| Foto: Foto: Marcelo Andrade – Arte: Felipe Lima

Na década de 1960, a frase "a imaginação no poder", eternizada na obra de Guy Debord, era grafitada nos muros de Paris. Escrita nas camisetas. Sussurrada no ouvido dos amantes. Meio século depois, há quem diga que a dita envelheceu. A imaginação não só não chegou ao poder – com exceção da Casa Branca, se me permitem – como não faria mais parte das práticas juvenis, hoje afundadas em tédio.

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A exemplo do que me disse um amigo, há tantas imagens disponíveis – basta clicar no YouTube para ver os pelados de Woodstock – que acabou sobrando pouco espaço para o mais estimulante dos jogos, o faz de conta. Hom’essa. Sem a doida da imaginação, o homem não teria derrubado tiranos, mas também não teria chegado à Lua ou desenvolvido tantos sabores de catchup.

Prefiro acreditar que a vida se reinventa. Nesse momento, alguém conjuga o presente do verbo imaginar, viaja no tempo e se coloca no lugar do outro. É um santo remédio contra a tirania, como prega o escritor israelense Amos Oz. Asseguro – há imaginativos às pencas por aí.

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É certo que a gente se frustra. Perguntei à caixa do supermercado se, ao observar as compras na esteira, ela imagina como é a vida dos clientes. "Não." E aos coveiros, se imaginam como era a vida dos Joões que põem para descansar em paz. "Não." Mas ainda ontem, vejam só, quis saber da arquiteta Ivilyn Weigert se imagina como eram as casas e igrejas que restaurou na última década. "Sim."

Pensei que seus olhos iam saltar da cara. Com a autoridade de quem participou do restauro da Igreja do Bom Jesus e da Fortaleza da Ilha do Mel, contou por onde voam seus pensamentos na hora em que risca a espátula para desvendar quantas mãos de tinta foram dadas numa parede centenária. Trata-se de atividade técnica. Mas enquanto a realiza Ivilyn "vê" mulheres de espartilhos subindo escadas de madeira que não mais existem. Seu poder é enorme – Debord tinha razão: enquanto a escuto, subo as escadas com ela.

No momento, a restauradora e seu sócio – Leandro Nicoletti Gilioli – trabalham no restauro da Ferragens Hauer, na Rua José Bonifácio com a Padre Júlio de Campos, atrás da Catedral. Até há pouco, o local era apelidado de "Boca do Mijo". Depois do incêndio que a arruinou, em maio de 1998, exatamente um século depois de sua abertura, a esquina erma e estreita virou um aconchego para os incontinentes, que ali deixam seus sinais nas formas líquidas e sólidas. Triste fim para aquela que foi a mais luxuosa loja da capital, inaugurada em 1888, num país ainda de escravos. Tinha 3,5 mil metros quadrados, 57 portas e janelas e, sorry shoppings, muito charme.

Mal dá para imaginar, mas com a ajuda de Ivilyn enxergo mísulas, postigos, peitoris. Frisos dourados nas letras "Hauer & Irmão". Pilares recobertos de metal feitos na Fundição Müller. Balaústres em madeira. "O primeiro piso era a loja, o segundo moradia da família, o terceiro hospedagem dos funcionários", explica a restauradora, fazendo lembrar o que diz Marshall Berman sobre a obsessão dos ricos pelos primeiros andares. Em caso de sinistro, estavam mais perto das ruas. Espertos.

Liamir Hauer, 89 anos, viúva do comerciante Arnaldo Hauer, lembra ter conhecido a loja nos tempos de menina. "Tinha taças da Bavária para vender. Tecidos finos para enxoval..." Sua descrição é um Amarcord de Fellini. Tenta, em vão, me contar a saga dos Hauer. Me perco em décadas nas quais não vivi ao ouvi-la contar sobre Franciscos e Edmundos, donos de incontáveis imóveis e de terras no Boqueirão.

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Enquanto ela fala, peço pregos ao balcão, numa tarde fria de 1930. Vejo uma guria correndo pela loja, laço de fita no cabelo e o sapato sujo do barro da lamacenta "rua fechada", como chamavam a região. Depois desses delírios nostálgicos, a Ferragens Hauer também me pertence. Estive lá, juro. A depender de Ivilyn e Leandro, apertem os cintos, muito reboco e ferro serão gastos para que outros possam fazer o mesmo. Vai custar uma fábula. A imaginação, afinal, tem seus caprichos.

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