Encontre matérias e conteúdos da Gazeta do Povo
Perfil

A herança do irmão Virgílio

Ainda menino, Virgílio Balestro se tornou aluno marista. Lá foi apresentado aos pratos sujos e aos livros. Com o tempo, a louça diminuiu. Já as leituras só fizeram crescer, formando um intelectual que tem o que dizer

Irmão Virgílio Balestro num dos janelões do Colégio Marista, na capital: “Coloquei a lanterna na proa da esperança e não na popa do desânimo”, diz, a respeito de seu último livro | Marcelo Andrade/ Gazeta do Povo
Irmão Virgílio Balestro num dos janelões do Colégio Marista, na capital: “Coloquei a lanterna na proa da esperança e não na popa do desânimo”, diz, a respeito de seu último livro (Foto: Marcelo Andrade/ Gazeta do Povo)

"A culpa é do Camões. Fui vítima de certos livros", brinca o irmão marista Virgílio Balestro, 83 anos, diante de uma pergunta feita pela Gazeta do Povo para começo de conversa: "A quem você deve por ter se tornado o que é"? Para respondê-la, precisou respirar, vencer a modéstia e entender por que diabos alguém estaria interessado em saber de sua vida. "Não passo de um pobre professor que tenta dar aulas por escrito por achá-las imperfeitas", resumiu, em três entrevistas seguidas.

Balestro – que vive desde 1972 na comunidade religiosa do Colégio Marista, na Rua Bispo Dom José, em Curitiba –, está se referindo ao livro Desiguais da natureza e desiguais incomuns, um calhamaço de 500 páginas lançado este ano pela Editora Champagnat. O subtítulo algo obscuro "GPS dos 13 Hércules faltantes", sugere que o autor, ainda que tímido convicto – ou por causa disso mesmo– é um conversador elegante. Qualquer dedo de prosa o confirma. Uma pena serem tão altos os muros do claustro. Do contrário, seria possível vê-lo e ouvi-lo mais vezes.

Irmão Virgílio é a tal da voz dissonante. Num mundo ideal, seu mais recente livro, uma espécie de testamento embalado em erudição, deveria figurar nas estantes ao lado de A lanterna na popa, de Roberto Campos, e Manual do perfeito idiota latino-americano, de Álvaro Vargas Llosa e outros, obra um dia apontada pelo crítico Wilson Martins como das mais importantes do século 20. Outra pena é Martins não estar mais aqui para ler Balestro.

Desiguais... é uma obra sobre política, economia e tragédias – as tragédias brasileiras, vistas aqui debaixo dos olhos de um homem pequeno, de inteligência viva e português lustroso, dono de uma brancura de mármore acentuada pela sobriedade do terno e da gravata. E, pelo recolhimento, longe do sol. Desde a meninice, a sala de estudos foi o palco de onde observa o homem e o mundo. Numa dessas salas leu Os lusíadas. Foi há exatas sete décadas. Tinha 13 anos de idade e não saiu impune de seu encontro com Camões. Se existe acaso, foi por intermédio dele que chegou à literatura e à vida religiosa. Outros chamariam de destino. Outros ainda de chamado divino. Escolham.

Encontro com os livros

"Papai era capataz de estrada e conseguia um conto de réis por ano. Cansou de matar cobras", inicia, numa sofrível concessão às memórias pessoais. Nasceu em Dois Lajeados, na Serra Gaúcha, "perto de Guaporé", numa família modesta de italianos e espanhóis – "mamãe me chamava de Verzílio".

Aos 10 anos, acompanha um de seus 11 irmãos ao Instituto Marista de Veranópolis, ainda sem saber se iria ou não seguir a vida religiosa. "Eu estava num lugar onde numa hora tinha de limpar mesas e em outra estar numa biblioteca", lembra, sobre a rotina conventual. Gostou do tempero, precisamente da segunda parte, na qual se notabilizou, com louros. É leitor aplicado, desses que tememos, em segredo, que sumam do mapa.

Depois da obra máxima da cultura lusitana, Balestro devorou Os Sertões, de Euclides da Cunha, acelerador de sua compreensão aguda – não raro cruel – de um país chamado Brasil. Era jovem demais para entender Canudos, mas já não havia remédio. Assumia-se um piá curioso. Mal podia imaginar que aquelas horas divididas entre a lavagem dos pratos e a sala de livros o levariam tão longe, da Serra Gaúcha para a Sorbonne de Paris.

Teve aulas com o historiador Fernand Braudel, com folga um dos intelectuais mais importantes do século 20, e com o economista François Perroux. Mas na sua fala não, são chapas. Fala de todos não com a reverência tola dos fãs, mas como parceiros com os quais digladiou e aprendeu, como diz, "a não servir chazinhos para a realidade". "Se não apresento nenhum remédio, o que eu faço é um sermão."

Polemista sim, otimista não

O reservado Balestro ama embates, de todas as naturezas, incluindo tripudiar os modelos cubanos, venezuelanos e congêneres. "São as barbaridades que me levam ao grito", repete. "Estamos errando o tempo todo. Que socialistas são esses que incentivam comprar carro?", emenda. Seu alvo, o Brasil. "Sei que não sou mais um jovem. Não posso falar grosso. Não tenho poder de mudar nada. Depois de tanta crueldade moral, até que somos um país de sorte", ironiza.

Mas não o tomem por um polemista de dedo em riste. Falou, sim, às tribunas do pensamento, mas principalmente a levas de alunos, estudantes de latim, obediente às rotinas escolares. Foram tantos quanto as estrelas. Deles tomou, paciente, as declinações e, supõe-se, as Fábulas de Esopo. E havia também as traduções, outra contabilidade infinita em seu claustro secreto. Por alto, teria vertido para o espanhol e para o francês algo como 100 mil páginas, uma cifra espetacular da qual trata com a mesma naturalidade de quem conta sobre as pilhas de pratos sujos do seminário.

Há 12 anos, Balestro se despediu do magistério. Desiguais..., o livro, nasceu do descanso. Como ele mesmo diz, pensou em corrigir o que pode não ter dito direito. Sabe-se lá. Não queria que o texto fosse a "lanterna na popa", tratando do que passou, mas a lanterna "na proa", iluminando o que vem pela frente. Só não o chamem de um "otimista" ocupado das grandes esperanças. Irrita-o. "O otimismo não pode ser uma cachaça. As abobrinhas deixo para os cozinheiros", brinca o menino que lia Camões, pronto para servir a mesa para o debate.

Principais Manchetes

Receba nossas notícias NO CELULAR

WhatsappTelegram

WHATSAPP: As regras de privacidade dos grupos são definidas pelo WhatsApp. Ao entrar, seu número pode ser visto por outros integrantes do grupo.