Encontre matérias e conteúdos da Gazeta do Povo
Opinião

A herança esquecida de Caio Prado Júnior

Em seu famoso prefácio para Raízes do Brasil, Antonio Candido analisa os textos a partir dos quais sua geração aprendeu a refletir sobre o Brasil: Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre; Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque e Formação do Brasil Contemporâneo, de Caio Prado Júnior, os quais formam as três grandes perspectivas do pensamento social brasileiro até hoje. Escritos na década de 1930, numa daquelas conjunturas em que a crise suscita grandes reflexões, aqueles ensaios renderam novos intelectuais e escolas de pensamento. No entanto, trata-se de uma tríade desigual quanto a sua repercussão pública, atestada, por exemplo, pela assimetria com que seus autores são lembrados por ocasião de seus centenários.

Hoje, 11 de fevereiro de 2007, Caio Prado Júnior faria 100 anos. No entanto, tem merecido até então um tratamento aquém da importância de seus estudos. Afinal, é considerado por muitos como um dos pais fundadores da moderna ciência social, cuja produção esteve na base de ao menos duas grandes tradições sociológicas brasileiras: as pesquisas sobre escravidão e questão racial, iniciadas por Florestan Fernandes, Fernando Henrique, Octávio Ianni, dentre outros, e as reflexões em torno da questão agrária, as quais renderam tanto estudos sobre a natureza peculiar do capitalismo no Brasil, como ásperos dilemas para a esquerda e o pensamento marxista até hoje.

Uma explicação possível para o esquecimento do autor é o atual contexto de globalização e perda dos referenciais utópicos que caracterizaram o século de Caio Prado, oferecendo ao primeiro intérprete do caráter contraditório da nossa formação social uma parte bem menor em nosso latifúndio. Outra hipótese pode ser seu "marxismo estranho", heterodoxo e que pouco se encaixava nas diretrizes do PCB, ao qual se filiou e militou por várias décadas.

Contribuindo para o quixotismo de sua trajetória, destaca-se ainda sua origem social, a tradicional burguesia paulista de inícios do século XX. Dentre seus tios-avós paternos figuram Martinho e Antonio da Silva Prado, os quais estiveram à frente da expansão cafeeira, ferroviária e industrial do século XIX, expansão essa lida por Florestan Fernandes como um dos momentos cruciais de nossa incompleta revolução burguesa. Vale ressaltar que tal insight de leitura coube justamente ao filho "rebelde" desta mesma elite.

A despeito do tom laudatório com que muitos valorizam sua ruptura de classe, é evidente que seu capital familiar lhe permitiu dedicar-se exclusivamente aos estudos. Após terminar o ensino secundário em Londres e formar-se em 1928 na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, ingressou no Partido Democrático, o qual reunia profissionais liberais de prestígio e jovens filhos da elite cafeeira. A vitória da Revolução de 30, contudo, não lhe iludiu. Radicalizando sua postura, ingressou em 1931 no Partido Comunista, o que lhe custaria inúmeras prisões durante o Estado Novo e a Ditadura Militar.

Em 1933, após uma viagem de estudos à União Soviética, escreveu Evolução Política do Brasil, onde expôs ao leitor seu "método relativamente novo": a interpretação materialista da história, contraposta à tradição dos historiadores de então, "preocupados unicamente com a superfície dos acontecimentos". No entanto, seria com Formação do Brasil Contemporâneo, de 1942, que o autor se consagraria como o intérprete mais polêmico da tríade apontada acima: ao mesmo tempo em que afirmava o caráter mercantil de nossa colonização, interpretando-a como fruto do capitalismo mundial – e negando com isso a idéia de um passado feudal, compartilhada inclusive pelo PCB –, Caio enfatizava também nossa desconcertante singularidade: não apenas o passado colonial ainda não fora suficientemente sepultado, como o "sentido da colonização", a saber, o caráter externo da nossa economia, ressuscitava formas sociais e econômicas tidas como arcaicas, mas imprescindíveis para a manutenção do moderno.

Alexandro Dantas Trindade é professor de Sociologia do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Paraná.

Veja também

Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Principais Manchetes

Receba nossas notícias NO CELULAR

WhatsappTelegram

WHATSAPP: As regras de privacidade dos grupos são definidas pelo WhatsApp. Ao entrar, seu número pode ser visto por outros integrantes do grupo.