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Expedição

A história da cidade que virou bairro

Diz-se que tem coisas que só Deus sabe. Uma delas deve ser quantas vilas formam a Cidade Industrial de Curitiba, a CIC, como é chamado o maior bairro da capital paranaense. São 170 mil habitantes – 10% da população de Curitiba – divididos num território de 13,5 quilômetros de comprimento, formando um mapa tão estreito e comprido quanto o do Chile. No lugar da Cordilheira dos Andes, uma paisagem monótona de capões com pinheiros, o Rio Barigüi, o Contorno Sul e uma Avenida Juscelino Kubitschek ainda inacabada, acidentes mais ou menos naturais que retalham 50% da região e a fazem absolutamente diferente de tudo o que se tem notícia.

Com alguns anos de experiência, pode-se chegar de uma ponta a outra da CIC em 15 minutos – há 105 quilômetros de asfalto à disposição. Já saber de cor o nome dos condomínios formados na rabeira da pista é uma tarefa para homens e mulheres de boa vontade e excelente memória. A soma das vilas da CIC é simplesmente uma conta que não fecha. Ajudam no cálculo José Dirceu de Matos, 52 anos, 15 de prefeitura, administrador regional da CIC; e o coordenador técnico Nadir Machado, 53 anos, 35 de PMC, braço direito de Dirceu. Com um mapa na mão eles aceitam o desafio e iniciam a lista que não cabe nos rascunhos da mesa, invade folhas maiores e exige canetas coloridas para separar conjuntos habitacionais, invasões e variações para o tema.

A dupla lança mão de todos os recursos para fazer o levantamento, incluindo usar como referência o Morro dos Piolhos, o Porto Seco – subsede da alfândega do Porto de Paranaguá – ou o cortume abandonado, maior área livre do bairro, com 250 mil metros quadrados. Mesmo assim, quebra a cabeça para lembrar "como é que se chama mesmo" a Vila Mazurski e diverge quanto às divisas. A pequena Riviera, com 200 famílias, é da CIC e não da Regional CIC. Listar ou não?

Por fim, chega-se ao consenso de espantosas 83 vilas – mais do que o conjunto de bairros de Curitiba inteira, sem contar a possibilidade em que durante o levantamento alguma nova área tenha nascido. Não é exagero. Dirceu e Machado avisam que mais da metade das unidades contabilizadas surgiu de ocupações irregulares e que algumas não ultrapassam míseras duas quadras. Para surpresa geral, embora do tamanho de um quintal de Santa Felicidade, essas vilas mantêm o nome próprio, sem que os moradores se rendam à facilidade de simplesmente dizer que vivem na CIC.

A explicação é simples. As vilas da CIC, sejam grandes como cidades, a exemplo da Vila Verde e seus 17 mil habitantes, ou pequeninas feito a Riviera de 200 casinhas, fazem parte de uma importante zona de conflito urbano da capital. Está naquelas bandas o maior número de ocupações irregulares da cidade. São 48 invasões contra 39 na Regional Cajuru, para a qual a CIC perde apenas em número de domicílios. Enquanto no Cajuru são 15.480 domicílios, na CIC são 12.002. Pode-se dizer que é um empate técnico. O que importa numa e outra região é manter a identidade extrabairro. É uma estratégia política. Na hora de negociar a regularização do terreno ou fazer pressão junto à prefeitura nada melhor do que formar um grupo que tenha cara própria e que se destaque no cenário sempre igual de casinhas feitas às pressas, ruazinhas de terra e chaminés de fábricas.

Por vias das dúvidas, os líderes comunitários não deixam ninguém esquecer que a CIC é uma área cercada de vilas por todos os lados. Eles formam um exército de 130 "miniprefeitos", onipresentes em assembléias e com uma lista de reivindicações debaixo do braço, a postos para impedir que Vilas Novas, Harmonia ou as Roses (são três vilas), para citar algumas, sumam do mapa desse latifúndio de 6 mil hectares. Aos 130, some-se mais 300 dos Consegs, conselhos de segurança dos bairros, nascidos de parceria entre associações, Polícia Militar e prefeitura. Não se pode dormir em serviço. Afinal, é difícil encontrar por ali alguém mais do que arremediado ou com a vida ganha. Morar na CIC ainda é sinônimo de morar longe e colocar na posse da terra as melhores esperanças. Não é preciso estatística. O olhômetro resolve. "Cerca de 90% do povo aqui é pobre, mesmo que 25% do ICMS do estado saia das indústrias da regional", lembra Dirceu, sobre o endereço que abriga 880 empresas.

Para quem acha que a CIC se resume a estrada pavimentada, uma empresa em cada esquina e uma vila no meio, um alerta: a Cidade Industrial "tem chão". São nada menos do que 410 quilômetros de vias de acesso, algo como ir daqui a São Paulo. Boa parte do trajeto é em picadinhas de terra. Dos 410, 200 quilômetros são de antipó, 105 de saibro e 105 com asfalto definitivo. Um verdadeiro rally dos sertões, do qual sobra poeira, principalmente para as donas de casa, que precisam ficar espertas para tirar a roupa do varal a cada nuvem levantada pelos carros, caminhões e, principalmente, ônibus.

Não por menos, o antipó é o campeão de reivindicações populares nos guichês do prédio de 1,5 mil metros quadrados da Regional CIC, inaugurado ano passado e rapidamente transformado em território livre. E um território onde a dificuldade de circulação no bairro virou assunto da hora. De acordo com dados da Urbs, os moradores das 83 vilas, ou sabe Deus quantas sejam, andam preferencialmente de ônibus, dividindo-se em quatro linhas de Ligeirinho, duas de interbairros, cinco convencionais e 38 alimentadores. Fazem um êxodo urbano que, de segunda a sexta-feira, entre idas e vindas, movimenta 300 mil passageiros, o equivalente a 15% de toda a população que usa a rede de transportes em Curitiba e região metropolitana – hoje, na casa dos 2 milhões de passageiros dia.

Todas essas variantes – o ônibus cheio, a Avenida Juscelino Kubitschek sem a quarta pista concluída, estradinhas de chão e levas de casas parecidas erguidas em vilas diferentes – não dizem tudo sobre a CIC, obviamente. Viver ali é uma saga, mas tudo indica que já foi mais complicado. Há uma década, a Cidade Industrial já era sinônimo de lonjura, qualidade do ar deplorável, mas também de enchentes no Rio Barigüi, desabrigando 10 mil pessoas a cada pé d’água mais demorado.

No mapa grande que ocupa meia parede na sede da Guarda Municipal na CIC ainda dá para ver a marca na área de risco, em azul. Chuva, ali, vinha acompanhada de trovoadas e pânico na Defesa Civil, como lembram os representantes da Guarda. Hoje, a área que já foi o Triângulo das Bermudas descansa em paz e forma uma paisagem meio bucólica na ponte que corta o Parque Mané Garrincha – um campinho modesto, apesar da grandeza do craque, inaugurado por sua viúva, a cantora Elza Soares. Vive cheio de molecada jogando pelada e virou uma espécie de cartão-postal do subúrbio. É um bom ponto de partida para se aventurar pela república das vilas populares. Da ponte em diante, não tem mais enchente. Tem um mar de gente.

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