Quando morrer, o contador aposentado Ataíde Natálio, 61 anos, não vai ser sepultado, nem cremado. Vai para a universidade. De preferência, a Federal do Paraná (UFPR), onde o pai, Alaor Natálio, já está desde que faleceu de problemas cardíacos em 1998, aos 65 anos.
Ataíde tem registrado em cartório desde 2000 documento em que declara a doação de seu próprio corpo para pesquisa após a morte. Decisão em que o pai dele foi pioneiro no Brasil.
Cinco meses antes de morrer, seu Aloar deixou uma carta escrita na frente de três dos oito filhos afirmando que seu cadáver deveria ser encaminhado para uma universidade quando morresse. Desde julho de 1998, os restos mortais dele estão no Departamento de Anatomia da UFPR, no Centro Politécnico, em Curitiba. Após o cadáver ter sido mantido intacto nos primeiros anos, atualmente a universidade preserva a ossada de seu Aloar, utilizada na formação de médicos, enfermeiros e outros profissionais da área biológica. Apesar de todo o avanço tecnológico, com o uso de computação e até bonecos na formação de profissionais da área biológica, o corpo humano ainda é imprescindível no estudo de anatomia.
“Meu pai só tinha o primário, mas era um homem estudioso, gostava de ler sobre filosofia e ciências. Era muito interessado em estudos metafísicos e dizia que a matéria não vale nada. Por isso doou o corpo: para ajudar a encontrar formas de prolongar a vida de outras pessoas”, explica Ataíde que, assim como o pai, é membro da Ordem Rosacruz, sociedade que estuda os mistérios da existência humana.
Realizar o desejo de seu Alaor não foi fácil. No dia da morte, ainda no Instituto Médico Legal (IML), Ataíde ligou para três universidades. Todas se negaram a receber o cadáver por não reconhecer a carta como documento. Aí entrou a persistência do filho. “Eu tinha que cumprir o desejo altruísta do meu pai de querer ajudar na formação das pessoas que vão cuidar de vidas. No dia em que ele escreveu a carta, me fez prometer isso e cumpri”, enfatiza o filho.
Prestes a expirar o prazo para que o corpo fosse removido do IML, Ataíde insistiu nas ligações aos diretores das universidades até chegar ao médico e professor de anatomia da UFPR José Geraldo Auerswald Calomeno. “O doutor Calomeno inicialmente disse que pela lei não poderia fazer nada. Perguntei por que as pessoas podiam doar órgãos e não o corpo. Aí ele fez ligações até conseguir levar meu pai para a Federal”, recorda.
Desdobramentos
Ainda assim, havia o problema da documentação. A questão só foi resolvida quando o médico recorreu ao então presidente da Associação Brasileira de Notários e Registradores (Anoreg), Rogério Bacellar, atual presidente do Coritiba, para que os cartórios criassem uma escritura em que as pessoas pudessem declarar em vida o desejo de doar o próprio corpo. Hoje, o documento pode ser lavrado no Paraná ao preço de R$ 120.
O gesto de seu Aloar ainda levou à criação em 2007 do Conselho Estadual de Distribuição de Cadáveres (CEDC), ligado à Secretaria de Estado de Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, sob fiscalização do Ministério Público. Desde a fundação, o CEDC encaminhou 27 corpos de doadores às universidades do estado.
Juntos, o documento e o conselho facilitaram o principal entrave dos cursos biológicos: a demora no acesso a cadáveres. Até então, as instituições só tinham acesso a corpos que não eram reivindicados pelas famílias.
Nesse caso, a lei exige uma série de procedimentos para a liberação. O primeiro deles é que o morto seja obrigatoriamente identificado e que aguarde no IML o prazo de 30 dias para que a família vá buscá-lo. Passado esse prazo, a instituição interessada no cadáver é obrigada a publicar dez anúncios em jornais procurando a família. Feitos os anúncios, o caso vai para a Justiça, que avalia se todas as chances de encontrar os familiares foram de fato esgotadas, processo que pode levar meses e até anos, dependendo do volume de trabalho nos tribunais.
Já na doação a transferência é imediata. “Meu pai saiu direto do velório, ‘pilchado’ de gaúcho, como ele gostava de se vestir, direto para o Centro Politécnico da Federal”, recorda Ataíde.
Família
Antes do entrave burocrático, Ataíde teve de enfrentar a rejeição da própria família em cumprir o desejo do pai. Nenhum dos cinco irmãos de seu Aloar aceitou a ideia de ele não ser sepultado. No velório, o filho tinha de mostrar a carta do pai a todo instante, provando que aquela era de fato a vontade dele.
“Até hoje, quando digo que o corpo do meu pai está na universidade e que vou seguir o mesmo caminho, todo mundo acha estranho, bizarro. Isso é falta de conhecimento, porque meu pai mesmo morto segue fazendo o bem”, enfatiza Ataíde, que, um ano após a morte, passou a visitar o pai no campus do Centro Politécnico.
“Na primeira visita fiquei triste, chorei muito. Me doeu ver que aquele homem que era tão cheio de vida, que gostava de dançar, de tocar violão, acordeão, tinha virado um corpo inerte. Na segunda vez, já tive noção do que aquilo realmente representava, que meu pai na verdade tinha sido muito corajoso em sua decisão. Isso me impregnou de vontade de fazer o mesmo”, explica Ataíde, que hoje tem dois outros membros da família interessados em seguir o mesmo caminho dele e de seu Aloar.