Relato de Nanette revela que barbárie nasce de vários fatores: aversão ao “outro”, crise econômica, populismo, medo de perder status social e ganância.| Foto: Henry Milleo/Gazeta do Povo

Corpo franzino. Andar vagaroso. Cabelos grisalhos. Rugas. A aparência da holandesa Nanette Blitz Konig não esconde a fragilidade de seus 87 anos. Mas – e isso é muito importante, veremos – as aparências enganam... Nanette é, na verdade, uma gigante. Sobreviveu ao holocausto nazista. À fome e às doenças do infecto campo de concentração de Bergen-Belsen. E também à brutalidade. “Uma vez enfrentei o comandante do campo. Quando ele apontou a arma para mim, estava tão cansada que disse: ‘Me mate; que seja’. Talvez essa indiferença tenha me salvado: tirei o prazer dele de me matar.” O oficial a poupou. Não foi assim com 6 milhões de judeus na Europa. Na Holanda de Nanette, dos 140 mil que o país tinha antes do conflito, restaram apenas 5.540.

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Nanette era uma criança de 11 anos, feliz e cheia de sonhos, quando a Alemanha invadiu a Holanda, em 1940. Ao término da guerra, a garota havia se tornado uma adolescente solitária de 16. Perdera pai, mãe e irmão. Todos mortos – direta ou indiretamente – pela máquina de extermínio dos nazistas. Nunca pôde se despedir deles. Tampouco tinha amigos para dividir a dor. Como Anne Frank – ela mesma, a autora do famoso diário. Nanette foi a última colega a dar um abraço em Anne, em Bergen-Belsen, pouco antes de ela morrer. Provavelmente de tifo.

A história do holocausto tem de ser conhecida. Isso nunca deve acontecer de novo. Para nenhuma minoria.

Nanette Blitz Konigsobrevivente do holocausto.
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Sozinha e sem um lar para voltar após o fim da guerra, Nanette virou adulta no sanatório em que ficou por três longos anos para se curar da tuberculose que contraiu no campo de concentração. Podia ter enlouquecido. Mas decidiu seguir adiante. “Tinha de continuar a minha vida do melhor jeito que podia.” Casou. Mudou-se para o Brasil. Teve filhos. Netos. Voltou a estudar.

Agora, já idosa, escreveu suas memórias daquele período tenebroso (Eu Sobrevivi ao Holocausto, da editora Universo dos Livros , foi lançado no ano passado). Ela também não se furta de atender a convites de escolas e universidades para falar de sua vida. Admite que o peso da idade dificulta tudo. “É cansativo”, afirma. “Mas necessário: se os sobreviventes se calam, é capaz de acontecer de novo.”

E não apenas com judeus. A história de Nanette revela que as sementes do horror continuam espalhadas por aí, esperando as condições para brotar. Inclusive aqui, no Brasil. E tudo tem a ver com as aparências. Com rótulos. Com aquilo que as pessoas acham que o outro é sem conhecê-lo verdadeiramente.

Assista ao depoimento de Nanette divulgado pela Gazeta do Povo em 5 de maio, Dia da Memória do Holocausto

A escalada da violência

A barbárie e a violência começam de forma sutil. E seguem uma escalada. “A Europa sempre teve antissemitismo. Desde o período medieval”, conta a sobrevivente. Mas o preconceito – qualquer preconceito – por vezes hiberna. Parece não estar lá. Quando então reaparece, está fortalecido. Na Alemanha, diz Nanette, se manifestou de forma cruel em meio a uma grave crise econômica no discurso de um líder populista, Hitler. Uma nação inteira acreditou: a culpa era da comunidade judaica.

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O ser humano, enfim, costuma ceder à tentação de ver no “outro” uma ameaça. Pode ser qualquer “outro”. A máquina da loucura nazista, quando posta em movimento, não passou por cima apenas dos judeus. Nanette cita uma lista longuíssima de “outros” que pereceram nos campos de extermínio: russos, poloneses, ucranianos, ciganos, comunistas, dissidentes políticos, maçons, padres católicos, testemunhas de Jeová, homossexuais.

 

Negros, nortistas, nordestinos... seja quem for. O ovo da serpente é o preconceito. É o desconhecimento do outro, de quem são eles, de onde vieram, dos motivos de terem costumes diferentes.

Nanette Blitz Konigsobrevivente do holocausto.

Em comum, os “outros” partilham algumas características. São minorias. Praticantes de “outras” religiões. Pessoas de “outra” origem étnica. Defensores de “outra” ideologia política. Adeptos de “outros” comportamentos sexuais. Ou simplesmente quem se opõe ao poder.

“A história do holocausto tem de ser conhecida. Isso nunca deve acontecer de novo. Para nenhuma minoria”, alerta Nanette. Alguma analogia possível com o mundo contemporâneo? Com o Brasil? É claro que sim. “Negros, nortistas, nordestinos... seja quem for. O ovo da serpente é o preconceito. É o desconhecimento do outro, de quem são eles, de onde vieram, dos motivos de terem costumes diferentes.”

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Democracia imperfeita

Alguém pode argumentar que regimes democráticos têm como evitar o pior. De fato. Mas Nanette lembra: Hitler foi eleito pelo voto popular. Democracias são imperfeitas, afinal. Exigem cuidado permanente. “O preço da liberdade é a eterna vigilância”, diz ela, repetindo o bordão.

Crises econômicas – como a que enfrentou a Alemanha antes do nazismo – também costumam ser gatilho para discursos de ódio. Essas crises sempre reaparecem. E trazem consigo outro risco: o empobrecimento da população. “Crianças e jovens pobres têm de ter oportunidades, uma boa escola. Caso contrário, eventualmente vão ficar revoltados com a sociedade”, alerta Nanette. Um prato feito para serem seduzidas pelo extremismo e pela via da violência. “É o que não queremos.”

Outra semente do mal está no conformismo e na indiferença diante da injustiça. No receio de perder posição social se seguir o que a consciência manda. Ocorreu na Holanda de Nanette após a invasão nazista. “Depois do fim da guerra, muitos disseram que resistiram. Não é verdade. Só 1% da população holandesa participou da resistência.” Parte ficou paralisada pelo medo. Pior foram os que colaboraram com os nazistas.

 
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Os judeus, conta a sobrevivente, inicialmente eram vigiados por policiais holandeses. Não pelos alemães. A segregação da comunidade foi facilitada porque burocratas da prefeitura de Amsterdã cadastraram a população judaica. Desde então, cada judeu tinha de carregar estrela de Davi amarela costurada na roupa para ser identificado – um rótulo infame. “Era perigoso andar assim nas ruas.”

A amizade com Anne

Também coube à prefeitura organizar as escolas só para crianças judias. Foi num desses colégios – o Liceu Judaico – que Nanette conheceu Anne Frank. Foram colegas de classe. Ela até participou do aniversário de 13 anos de Anne. Deu-lhe um broche. E a amiga ainda ganhou do pai um certo caderno no qual escreveria seu diário.

Anne: reencontro com a amiga no campo de concentração. 

A convivência entre as duas, porém, durou pouco. Professores e alunos do liceu simplesmente desapareciam da sala de aula, aos poucos. Eram deportados para campos de concentração. Ou fugiam. Anne também sumiu. A família decidira se esconder dos nazistas num anexo secreto da residência em que morava. Foi ali que Anne viveu os dois anos relatados no diário.

Mas alguém traiu os Frank e os delatou aos alemães. “Havia muitas denúncias de holandeses contra judeus. Em troca de dinheiro”, diz Nanette. Sempre há alguém disposto a ganhar dinheiro com a desgraça alheia. Oportunismo: outra semente do mal.

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Descoberta pelos nazistas, Anne foi enviada para Bergen-Belsen. Onde reencontraria a antiga colega de escola. “Ela estava reduzida a um pequeno esqueleto. Eu também: tinha uns 30 quilos”, diz Nanette, lembrando a extrema privação de comida a que foram submetidas. “Mas nosso reencontro foi emocionante. Nos abraçamos.” A amiga falou de suas anotações no caderno. Disse que tinha um sonho: publicá-las. Não teve tempo de saber que O Diário de Anne Frank seria um best-seller mundial. Morreu logo depois do abraço na amiga. Pouco antes do fim da guerra.

Corpos empilhados durante a libertação do campo de concentração de Bergen-Belsen pelos aliados, em 1945.