A história e o historiador no mundo

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Clarificar os complexos percursos da ação humana no tempo – que chamamos de história – é uma vocação de todos, uma especialidade de alguns. Os historiadores dissecam o passado, estudam seus efeitos no presente – e ponderam suas consequências também no futuro

Gente como nós e sociedades em geral buscam situar-se no tempo, no espaço, na memória, na cultura. A fundamentação da identidade de cada um é uma constante da reflexão histórica. Como um farol de Alexandria redivivo, a historiografia aponta origens, analisa processos, reconstitui fases e atores, interpreta o passado à luz do presente, projeta seu clarão para o futuro.

A história é o meio ambiente cultural em que nos constituímos como pessoas conscientes e atuantes. Em diversos espaços sociais e em momentos são formados o pensamento histórico, a consciência histórica, a cultura histórica.

Ambiente familiar, ambiente escolar, ambiente social – comunidade de idioma, comunidade de valores, comunidade de crenças e opiniões, comunidade política, comunidade cultural – enfim, existe uma grande rede situada no tempo e no espaço – na história e no mundo real. É na (nossa) história que reconhecemos nossas origens, é nela que situamos nossa vida pessoal, familiar, social. É com relação a ela que afirmamos nosso ser e nosso agir. Pela tradição, pela transformação ou mesmo pela rejeição – da história não se escapa. Ninguém nasce em um mundo sem história.

Conhecê-la, conhecer como ela foi feita pelos outros e como ela é feita por nós, compreender como ela foi e é entendida por qualquer pessoa e pelos profissionais de sua pesquisa, os historiadores, é um anseio generalizado. É dirigir a luz do farol para esclarecer, iluminar, reconhecer a clareza e a sombra, tomar posição por decisão própria, decidir, fazer, contar porquê, como, onde, para quê.

Clarificar os complexos percursos da ação humana no tempo – que chamamos de história – é uma vocação de todos, uma especialidade de alguns. Os historiadores dissecam o passado, estudam seus efeitos no presente – e ponderam suas consequências também no futuro, pois o futuro é o presente de que hoje é a véspera... Todo hoje é passado de um amanhã. Todo passado é o ontem de um hoje. Somos nós que, pela consciência histórica da constante interdependência do tempo, estabelecemos a conexão e atribuímos a ela sentido.

O historiador trabalha a matéria-prima da ação humana plasmada nos documentos de todos os tipos. Transmite seu saber técnico a todos, a começar por aqueles que trabalham nas escolas de todos os níveis. Nas escolas, o contato com a memória coletiva transmitida pelas professoras e pelos professores passa pela historiografia e pelos modos como ela é produzida.

Produzir história tem assim dois sentidos muito corriqueiros: é o agir de todos e de cada um de nós, fazendo o que fazemos, por que motivo seja, pouco (ou muito) do outro.

A memória acumulada na tradição histórica passa à consciência histórica de cada um pela convivência social espontânea: contam-nos o que aconteceu, como "era antes", como "foi um dia", como "as coisas ocorreram". O historiador passa todas as informações históricas (documentadas nas fontes) a pente fino, pois é formado e treinado profissionalmente para isso: produz historiografia teórica e metodicamente estruturada. O professor de história é formado – também profissionalmente – para lidar com essa historiografia e a utilizar em seu ofício de ensinar e de fomentar, por sua vez, a consciência histórica e o espírito crítico de seus alunos. O primeiro espaço social dessa experiência é a escola formal. A escola do dia a dia, porém, no espaço geral da sociedade, em qualquer tempo, é o mundo, a vida de todos e de cada um, em que a palavra da história é praticada e transmitida pelos historiadores e pelos professores de história. A história pensada, a história narrada, a História criticada é a história de todos e de cada um. Conhecê-la mais e melhor é conhecer a si mesmo, mais e melhor.

* Estevão de Rezende Martins é Professor de Teoria da História e História Contemporânea na Universidade de Brasília. Organizador e um dos autores do livro A história pensada – teoria e método na historiografia europeia do século XIX (Ed. Contexto, 256 páginas, R$ 39,90).