São Paulo (AE) Nem bem a Vila Isabel começou a comemorar o título do Carnaval de 2006 no Rio de Janeiro, a Igreja Católica tratou de abanar as cinzas da quarta-feira da ressaca, reacendendo o debate político no país. Em Brasília, durante a cerimônia de lançamento da Campanha da Fraternidade, o secretário-geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), dom Odilo Scherer, acusou Lula de transformar o Brasil num "paraíso financeiro". Digamos que o religioso não pegou leve. Em São Paulo, o arcebispo dom Cláudio Hummes, aliado histórico do presidente-sindicalista, endossou Scherer e jogou mais lenha na fogueira. "A esperança já não era grande, mas ficou muito abaixo da expectativa", disse Hummes, referindo-se ao minguado crescimento de 2,3% do Produto Interno Bruto (PIB).
Por trás do economês ralo, os hierarcas da Igreja Católica trataram de marcar posição: deixaram claro que, daqui para a frente, vão cobrar sem mesuras a política social que Lula prometeu, mas não executou. "A população quer saber o que será feito para gerar trabalho, distribuir a renda e acabar com a sangria para grupos financeiros", enumerou dom Odilo. "Não sou analista político, especialista ou economista, mas, pelo que se escuta, o Brasil precisa crescer, porque não crescer é não ter emprego", ecoou dom Cláudio.
Mas, se o Bolsa-Família se espalha pelo país e Lula desponta nas pesquisas de intenção de voto como o favorito entre os mais humildes, do que afinal a Igreja reclama? "Ela está frustrada porque o presidente poderia ter feito mais", afirma o brasilianista Kenneth Serbin, há 20 anos estudando as relações IgrejaEstado no Brasil. "Lula se distanciou dos movimentos sociais que o apoiaram, e esse é um dos maiores erros de seu governo na minha opinião." Dito isso, Serbin adverte: desta vez, as lideranças católicas poderão desembarcar da campanha Lula Presidente, rompendo uma antiga aliança. Bispos terão força para mudar o voto do rebanho? Lula poderá acenar para os evangélicos compensando a debandada de fiéis? Quem perde, quem ganha nessa história? É sobre questões como essas que o jovem brasilianista fala em entrevista exclusiva, diretamente da Universidade de San Diego, na Califórnia (EUA), onde leciona e pesquisa.
Como o senhor definiria hoje as relações da Igreja Católica com o governo Lula?
Kenneth Serbin As relações estão ruins e podem piorar. Eu diria mesmo que chegaram ao patamar mais baixo de uma longa e antiga convivência. Por mais de duas décadas a Igreja protegeu Lula, defendeu-o quando ele despontou como o líder sindical que enfrentou o regime militar, e continuou dando-lhe apoio, explícito e implícito, todas as vezes em que disputou a Presidência. Hoje, no entanto, o discurso que a Igreja tem reservado para Lula lembra aquelas mesmas palavras duras que um dia usou contra os militares ou contra os governos Sarney, Collor e Fernando Henrique Cardoso.
É possível dizer que a lua-de-mel acabou?
Houve uma lua-de-mel muito curta, na verdade. Porque não demorou a ficar claro que o governo não implementaria políticas sociais profundas e inovadoras, e que elas não seriam, portanto, a marca registrada da passagem de Lula pela Presidência. Foi um reverso de expectativas que teve grande impacto no clero.
Quando o secretário-geral da CNBB, dom Odilo Scherer, diz que o atual governo transformou o Brasil num "paraíso financeiro", pode-se imaginar que esse tom ficará ainda mais grave com a aproximação das campanhas eleitorais?
Não. A fala de dom Odilo é típica do que a Igreja tem dito com respeito aos governos brasileiros nas últimas décadas. Justiça social foi e continua sendo o objetivo central das preocupações da Igreja. Quando um governo não se move na direção desse objetivo, os bispos então reagem como se fossem cães de guarda da moral social, e cobram resultados. Ao fazer essas cobranças, é claro que sobram críticas exaltadas contra os demônios do capitalismo e a perniciosa estrutura de classes brasileira.
Será que, ao aumentar o volume das queixas, a CNBB não estaria tentando influenciar o que seria um próximo programa de governo de Lula?
Também não. Não acho que a esta altura os bispos tenham esperança de mudanças num eventual segundo mandato do petista. Sinto uma profunda frustração nesses religiosos. Convém lembrar que, no passado, muitos bispos não apoiaram Lula para presidente, preferindo candidatos como Mário Covas. Não está cravado que a Igreja, em bloco, irá apoiar Lula. Ao contrário, poderá apoiar o candidato que ela acredita que irá mudar a situação social brasileira. Lula provou, com sucessivas evidências, que ele não é a pessoa certa para a liderança católica.
Se as críticas ganharem intensidade, haverá perigo de uma ruptura da velha aliança, em 2006? Ou a coisa ficaria apenas no estremecimento de relações?
Minha opinião é que os bispos estão abertos a apoiar outro candidato nas eleições deste ano. Talvez não façam isso publicamente, mas já sabemos que muitos não irão mais votar em Lula. Tudo vai depender de quais serão os outros candidatos. Algumas lideranças religiosas poderão se aproximar de candidatos mais radicais, como alguém do PSol. Outros podem achar José Serra um candidato atraente.
Que tipo de disputa eleitoral teremos pela frente?
Nesta eleição, a estabilidade econômica deixará de ser um assunto tão importante. Tanto o PT quanto o PSDB já provaram que podem controlar a inflação e manter a moeda estável. As discussões econômicas fundamentais serão crescimento econômico e geração de empregos. Muitos brasileiros continuam desempregados ou subempregados. Obviamente, os juros escandalosamente altos do Brasil serão discutidos também, porque são uma das chaves para aquecer a economia de novo. A grande questão para o eleitor médio será a corrupção. O PT falhou na área em que parecia se distinguir dos outros partidos. Agora, os eleitores terão de examinar mais profundamente os candidatos em termos de integridade. E é aqui que a Igreja entra em cena. A Igreja não vai endossar um candidato à Presidência. Mas vai dar diretrizes muito claras do perfil que considera o melhor para o país. Nesse ponto, a Igreja poderá ter influência significativa na eleição. Esse perfil pode muito bem fazer com que os eleitores optem por candidatos diferentes de Lula.
E se Lula compensar a perda de votos entre os católicos aproximando-se dos evangélicos?
Em 2002, ele já se aproximou bastante dos evangélicos ao forjar uma aliança com o PL, um partido notório pela presença em seus quadros de pastores da Igreja Universal do Reino de Deus. Essa foi uma reviravolta histórica, já que em eleições anteriores, especialmente em 1989, a Igreja Universal havia pintado Lula como o demônio. Hoje o presidente não pode se dar ao luxo de abandonar o voto católico, assim como nenhum outro candidato que almeje vencer uma eleição nacional. Católicos ainda são a maioria na população brasileira.
Fala-se tanto que o governo deu as costas para os mais pobres, mas, nas recentes pesquisas de intenção de voto, Lula é o favorito da classe C. Ganha com boa margem. O programa Bolsa-Família, apesar de receber críticas de especialistas em geração de renda, já está tendo uma contrapartida reversível em votos. Há outros projetos sociais em marcha. Afinal, do que a Igreja reclama?
A Igreja está frustrada porque Lula poderia ter feito muito mais. Como já disse, houve décadas de espera por essa oportunidade. Desde o presidente João Goulart (1961-1964) a esquerda brasileira especialmente a vertente radical, que incluiu muitos militantes católicos não tinha uma oportunidade tão boa para exercer influência política. O Brasil ainda tem um enorme número de pessoas miseravelmente pobres, e isso é inaceitável para um país que está entre as megaeconomias mundiais. Ninguém estava pedindo revolução. Isso estava fora de questão. Mas a Igreja e seus aliados esperavam uma atenção maior aos desafios sociais.
Um grupo intersetorial, liderado pela Secretaria de Políticas para a Mulher do governo Lula, deu em 2005 passos importantes no sentido de rever a legislação punitiva do aborto. Isso teria ajudado a arranhar o relacionamento Igrejagoverno?
Os escândalos de corrupção de 2005 eliminaram qualquer possibilidade de mudança na Lei do Aborto. Lula não teve capital político para propor mudanças e o Congresso Nacional estava muito absorto nos escândalos para prestar atenção nesse assunto. De qualquer forma, os bispos naturalmente ficariam perturbados com qualquer mudança no Código Penal a respeito desse tema. Aborto é uma caixa-preta que poucos políticos querem abrir, pela seguinte razão: brasileiros e brasileiras, apesar de freqüentemente recorrerem ao aborto, no fundo ainda acreditam que é moralmente errado.