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Memória

A “igrejinha” que venceu o século

O pastor Edgar Leschewitz no interior da “Igreja de Cristo”, no São Francisco: ainda um desconhecido | Daniel Castellano/ Gazeta do Povo
O pastor Edgar Leschewitz no interior da “Igreja de Cristo”, no São Francisco: ainda um desconhecido (Foto: Daniel Castellano/ Gazeta do Povo)
Pastor Edgar Leschewitz com a talar [túnica] e o pleitilho [lenço branco no colarinho] – veste usada nos cultos. Pátio da

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Pastor Edgar Leschewitz com a talar [túnica] e o pleitilho [lenço branco no colarinho] – veste usada nos cultos. Pátio da

Detalhe da Bíblia usada nos cultos luteranos – em sua maior parte celebrados em alemão |

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Detalhe da Bíblia usada nos cultos luteranos – em sua maior parte celebrados em alemão

Órgão de tubo da Casa Hertel, mas de fabricação alemã. Instrumento é do final do século 19. É tocado aos domingos pela organista Ingrid Seraphim, 82 anos, uma das musicistas mais importantes do estado |

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Órgão de tubo da Casa Hertel, mas de fabricação alemã. Instrumento é do final do século 19. É tocado aos domingos pela organista Ingrid Seraphim, 82 anos, uma das musicistas mais importantes do estado

Pintura de Cristo no altar. Obra foi realizada a quatro mãos, pelo pastor Karl Frank e sua mulher Elizabeth. Ícones são incomuns em templos protestantes, mas Karl, que era alemão da Baviera, quis replicar em Curitiba um costume das igrejas reformadas de sua região |

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Pintura de Cristo no altar. Obra foi realizada a quatro mãos, pelo pastor Karl Frank e sua mulher Elizabeth. Ícones são incomuns em templos protestantes, mas Karl, que era alemão da Baviera, quis replicar em Curitiba um costume das igrejas reformadas de sua região

Panorâmica do centro comunitário – local abrigou o primeiro jardim de infância de Curitiba, a partir de 1928, e as primeiras turmas do Colégio Martinus, depois instalado na Rua Trajano Reis |

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Panorâmica do centro comunitário – local abrigou o primeiro jardim de infância de Curitiba, a partir de 1928, e as primeiras turmas do Colégio Martinus, depois instalado na Rua Trajano Reis

Detalhe do pátio externo da

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Detalhe do pátio externo da

Fachada da

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Fachada da

Quem olha de fora a capelinha luterana da Rua Inácio Lustosa – no bairro São Francisco – logo se rende ao cenário tomado por taquaras, hortênsias, pés de café e butiás. É paisagem perdida no tempo, como se diz. E faz tempo – há exatos 100 anos, o local batizado como "Igreja de Cristo", a Christus Kirche, foi inaugurado debaixo das mais tradicionais lides protestantes: com liturgia sóbria, canto coral e um sermão de retórica inflamada.

Não eram tempos de paz, ao contrário do que a paisagem de aldeia germânica pode sugerir. A "igrejinha", apelido pelo qual ficou conhecida, fora erguida depois de um entrevero na comunidade luterana local. O episódio é digno de Lutero. Na virada do século 19 para o 20, grupos mais puristas reclamavam a volta das aulas de ensino religioso no currículo regular da Escola Progresso – colégio mantido pela confissão no local onde hoje está a Praça 19 de Dezembro. Os liberais, conta-se, "falaram alto", na defesa de uma mentalidade educacional mais laica.

Em resposta, cerca de 15 famílias alemãs se rebelaram, dando início ao "quase" cisma, que resultou na construção do prédio da Inácio Lustosa. Eram Kauchmann, Ernlund, Graeml, Müller, Gaertner, Wendler... Depois de peregrinar por casas da região – que lhes serviam de espaço para culto – os revoltosos decidiram erguer um lugar para chamar de seu. O episódio é narrado entre os luteranos como uma espécie de saga na floresta negra: em apenas seis meses se ergueu a igrejinha que iria se tornar uma das joias da arquitetura religiosa do Paraná.

Com a inauguração, em 26 de janeiro de 1913, a divisão dos luteranos em dois grupos parecia questão de horas. Certamente não ouviriam a Deustche Welle no mesmo rádio. Para se ter uma ideia, em represália, muitos do que participaram do pequeno levante não puderam sequer ser enterrados no belíssimo Cemitério Luterano da Travessa Lutero, no Alto da Glória. Mas o "divórcio" não aconteceu.

A paróquia acabou assumida pelo pastor alemão Karl Frank, que se encarregou de domar os ânimos separatistas. Frank – hoje nome de rua no Boqueirão – ficou nada menos que 45 anos à frente da comunidade. Não fez dela uma paróquia arrasa quarteirão. O núcleo de participantes permaneceu pequeno e, contra todas as evidências, irmanado à Igreja do Redentor, sede dos luteranos mais liberais, na Rua Trajano Reis.

Mas não se pode dizer que foi muito barulho por nada. A "igrejinha" obedeceu o destino traçado na época da contenda com a Escola Progresso. Foi o primeiro jardim de infância da capital, em 1928. Ali estão as raízes do Colégio Martinus, iniciado nas modestas salas do centro comunitário. O local foi também um epicentro da música erudita de Curitiba e do cultivo do alemão, ainda hoje idioma oficial dos cultos. "Não é exagero nenhum dizer que dali saíram muitos instrumentistas que abasteceram o elenco das orquestras", comenta a pesquisadora Elisabeth Prosser, da Escola de Música e Belas Artes.

Os puristas de 1913, conta o pastor Edgar Leschewitz, 47 anos, líder da comunidade, temiam que o luteranismo relaxasse em sua missão de aliar arte e fé. Como estrilaram, tinham obrigação de fazer a coisa certa. Cada centímetro da "igrejinha" parece dizer exatamente isso. Vide o órgão montado pela Casa Hertel, cujo fole é datado de 1892, tocado aos domingos por uma das decanas da cultura local, a pianista Ingrid Seraphim. O outro sinal está no próprio templo, que parece desafiar o despojado estilo protestante. Há pinturas nas paredes e, no altar, uma pintura de Cristo diante de Jerusalém é de autoria do próprio Karl e de sua mulher, Elizabeth.

"Imagens em igreja protestante?", diria alguém. É o bastante para o pastor Edgar Leschewitz desfiar os equívocos a respeito do assunto. Lembra que há ilustrações em antiquíssimas Bíblias protestantes. Charges religiosas. Por que não nas paredes? Mas concorda ser de fato uma concessão incomum. "Frank era de Neuendettelsau, na Baviera, e quis reproduzir aqui o estilo arquitetônico e decorativo da região onde nasceu", explica, sem esconder seus desejos.

Edgar sonha com o tombamento da "Igreja de Cristo", fazendo com que se torne visitada como merece. A comunidade hoje é formada por 120 famílias. É conhecida por esses poucos, por instrumentistas que procuram ali parceiros para tocar Bach, por estudantes de alemão e luteranos de outras divisas. Não lhe faltam uns poucos distraídos, que se penduram no portão ao encontrá-la, como que diante de uma visão.

Alfabetizados e independentes

A "Igreja de Cristo" está longe de ser um mero monumento religioso pitoresco. O templo faz parte de um conjunto de marcos arquitetônicos do bairro São Francisco que indicam a intimidade entre o desenvolvimento cultural de Curitiba e a presença dos imigrantes, ali fixados de forma mais expressiva a partir de 1870.

Diante do Clube Concórdia, da Igreja do Redentor e da "igrejinha", por exemplo, difícil ignorar que os luteranos eram alfabetizados – pois liam a Bíblia – e que, em boa parte, cultivavam a música erudita. Fez diferença no Paraná distante e pouco habitado. Não à toa, a "Curitiba ale­­mã antiga", letrada e progressista, mexe com a pena dos pesquisadores. Inclusive estrangeiros, como o francês Alain Bideau, que estudou a comunidade da Rua Inácio Lustosa em sua passagem pela UFPR, no início da década.

"A presença alemã aqui é muito particular", comenta o pastor Edgar Leschewitz, ao lembrar que uma das levas de imigrantes aqui chegadas vinha do Vale do Itajaí. Mal adaptados a Santa Catarina, desobedeceram as regras, abandonaram a Colônia Dona Francisca e se fixaram em Curitiba. "Eram independentes, criaram suas próprias regras, inclusive na liturgia luterana", destaca Edgar.

O pesquisador Wilson Maske, 45 anos, coordenador do laboratório de História da PUCPR, é cauteloso ao associar o desenvolvimento local à presença de "alemães luteranos leitores". Ele ressalta que havia outras etnias, como a suíça, entre os protestantes da Curitiba do fim do século 19. Que foram várias levas migratórias, nas quais se destacavam alguns nichos de estrangei­ros cultos, capazes de influenciar a cidade.

Maske admite, contudo, que os alemães influenciaram os demais grupos no estilo de vida. É exemplo o gosto pelo montanhismo e pela bicicleta, o consumo do pão preto e o associativismo. Costuma ser motivo de piada dizer que onde há dois alemães surge um clube, mas a capacidade de vida gregária é uma das ga­­rantias do progresso. "Os atores dão origem ao Clube Thalia. Os cantores, ao Clube Concórdia", enumera o historiador. A discreta "igrejinha" dos luteranos mais piedosos é um capítulo dessa trama, com muito a dizer.

Veja de perto como é a capelinha luterana

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