| Foto: Mauro Campos

Alisson dormia na soleira da porta, como sempre. O barraco de peça única era quarto, cozinha e sala ao mesmo tempo. De repente, dois estampidos ecoaram no beco da Vila Sabará, o lugar mais barra pesada de Curitiba, e na penumbra ele viu um corpo tombar sobre o seu. Num átimo, o menino que naquele dia completava 5 anos de idade tinha no colo a cabeça do pai perfurada por uma bala. Era o tráfico acertando as contas. A má sorte daquela madrugada de 26 de fevereiro de 1994 determinaria a história de Alisson. Uma história feita de estatísticas negativas que hoje podem ajudar a interpretar as diferentes versões em torno da redução da maioridade penal no país.

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Há dois meses o Congresso Nacional vem discutindo propostas que, se aprovadas, podem mudar a lei permitindo que um adolescente infrator seja enviado a uma penitenciária aos 16 anos ou menos. Contudo, hoje a redução da idade penal já acontece em um terço dos estados brasileiros. Não por força de lei, e sim por força das circunstâncias. Por falta de vagas em educandários, 685 jovens com menos de 18 anos estão presos em cadeias junto com criminosos adultos. São 300 em Minas Gerais e 157 no Paraná. Os dados são de agosto de 2006, colhidos pela Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República.

Além dos já encarcerados, 450 dos 700 adolescentes internados no Paraná também estariam em penitenciárias se a idade penal de 16 anos já estivesse em vigor no país. Seriam retirados de uma estrutura destinada a reeducá-los para serem lançados num sistema carcerário que, há muito se sabe, não recupera ninguém. É em meio a este emaranhado de estatísticas que desponta a história de Alisson (o nome é fictício, escolhido por ele mesmo). A execução do pai fez a mãe desaparecer com medo de ser a próxima. O menino, a irmã de 2 anos e um irmão de colo foram parar na casa da avó paterna. Tudo ia bem para Alisson até os 13 anos.

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Virada

O garoto queria o tênis da moda, mas a avó não tinha dinheiro. Foi a época do primeiro assalto a mão armada e da primeira das cinco passagens pela Delegacia do Adolescente Infrator. Saiu em 45 dias e voltou a assaltar. Não suportou a pressão consumista vinda da televisão, dos outdoors, do rádio, do cinema. "Eu via os piás andando arrumados", diz. Sem se dar conta, já trilhava o rumo do pai. Começou a vender o mesclado, uma mistura de maconha e pedra de crack. Depois de rechear as estatísticas da violência como vítima e como infrator, as incursões de Alisson por educandários e programas de recuperação terminaram há duas semanas.

Foi preciso um choque de realidade de 11 meses no Educandário São Francisco para ele cair em si. Viu um colega ser morto na rebelião de 25 de novembro. A imagem do pai saltou-lhe à mente. Não dava mais para continuar nessa vida. Chamou a avó materna, que ignorava seu paradeiro. "Pensei que ele estivesse com a outra avó", conta. Alisson mudou de cidade para fugir do assédio do tráfico. "Larguei tudo", garante. Hoje, vive com a avó, voltou a estudar – está na 5ª série – e trabalha como pintor de paredes. Deixou de ser um caso perdido.

Para a diretora do Educandário São Francisco, Solimar Gouvêa, a história não teria este desfecho se ele tivesse sido jogado numa penitenciária aos 16 anos. "A maioria só precisa de uma chance", diz. Metade das infrações cometidas por adolescentes no Paraná é de furto e delitos contra o patrimônio. Outra parte (27%) acaba na delegacia por causa de brigas ou mau comportamento. As ocorrências graves, de homicídio e tráfico de drogas, somam 22% – para adultos, o tráfico é considerado grave; para o menor de idade, se for reincidente.

Internamento

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Crimes com requinte de crueldade são situações excepcionais, diz a presidente do Instituto de Ação Social do Paraná (Iasp), a psicóloga Thelma Alves de Oliveira. Tanto que só em 10% dos casos, em média, chega-se ao internamento, a punição mais dura prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Em Curitiba, as medidas socioeducativas são executadas pela Fundação de Assistência Social (FAS), ligada à prefeitura. As sanções mais pesadas são cumpridas pelo governo nas unidades mantidas pelo Iasp, que fechou o ano passado com 5.047 medidas socioeducativas e 700 jovens internados (muitos já estavam ali desde anos anteriores).

O ECA estabelece seis formas de punição, que permitem a progressão das medidas socioeducativas: 1) internação, que pode chegar a três anos; 2) semiliberdade, com direito a freqüentar escola e cursos profissionalizantes e tempo para ver a família; 3) prestação de serviços à comunidade, com a realização de tarefas gratuitas em hospitais, escolas, creches, postos de saúde; 4) liberdade assistida, na qual o adolescente segue a vida normal e por no mínimo seis meses é orientado por um técnico que manterá o juiz informado sobre seu comportamento; 5) a advertência; 6) a obrigação de reparar o dano causado.

Para adolescentes infratores não existe uma sentença preestabelecida, diferentemente do sistema penal comum. A permanência do jovem numa unidade socioeducativa ou sua progressão para uma medida em meio aberto depende de uma avaliação periódica. A cada seis meses os profissionais que o acompanham (psicólogos, assistentes sociais, advogados) encaminham ao juiz da infância um relatório com informações do seu processo de ressocialização. Se julgar necessário, o magistrado pode solicitar uma audiência com essa equipe técnica, que inclui o diretor da unidade, e a família do adolescente.

Rigor

O jovem infrator pode ficar até nove anos respondendo por seus atos, por meio da progressão de medidas. Para especialistas em Justiça penal juvenil, isso desfaz o mito de que nada acontece com menor de 18 anos que comete infração. A punição pode até ser mais rigorosa. Um adulto condenado a 18 anos de prisão por assalto, por exemplo, pode sair em três se tiver bom comportamento. Enquanto o adulto pode responder até acusação de homicídio em liberdade, o jovem vai direto para o educandário. Há, ainda, a diferença de tempo nas duas faixas etárias. Para um jovem, um ano perdido na prisão tem uma importância e uma temporalidade bem maior do que para uma pessoa de 40 anos, por exemplo. "É uma punição a mais para quem vai perder boa parte da adolescência", diz Thelma.

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A progressão de medidas socioeducativas, e a própria recuperação do adolescente, só funciona se o acompanhamento dado a ele for rigoroso. O descumprimento dessas medidas é um sinal de negligência, diz a advogada Marta Tonin, ex-presidente da Comissão da Criança e do Adolescente no Conselho da Ordem dos Advogados do Brasil e representante da OAB no Conanda, o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente. A conclusão é óbvia, mas ainda parece indecifrável para a maioria das pessoas: sem esse trabalho não há como garantir à sociedade que o adolescente não irá cometer mais infrações quando sair da unidade.

Mas para a progressão funcionar, o juiz precisa ter para onde encaminhá-lo. Cabe ao estado fazer programas de semiliberdade e às prefeituras, executar medidas de meio aberto, como a liberdade assistida e prestação de serviços à comunidade. Contudo, o Levantamento Nacional do Atendimento Socioeducativo ao Adolescente em Conflito com a Lei, realizado pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos, em 2006, mostrou estados sem uma única vaga de semiliberdade, como Espírito Santo, Mato Grosso e Tocantins. Dezessete estados não têm vagas para semiliberdade feminina. Já o regime de meio aberto se concentra nas capitais.