Qual é o papel de cada instituição na educação de crianças e adolescentes? Antes, família e escola tinham funções bem definidas: valores morais aqui, conteúdos das disciplinas para lá. No século 21, outros atores entram em cena e o momento é de redefinição de processos, acredita a psicóloga Rosely Sayão, consultora educacional com mais de 30 anos de experiência, que esteve em Curitiba para o TEDx Educação, no último dia 5. Em entrevista à Gazeta do Povo, Sayão fala sobre os desafios enfrentados por pais e escolas, e a importância de conceder ao aluno o protagonismo do seu aprendizado, sem que isso signifique perda de autoridade dos mais velhos.
Muito se fala hoje em uma escola que preze pelo protagonismo do aluno. É uma tendência que surge como oposição à noção de professor como único detentor do conhecimento. O que falta para a escola avançar neste sentido?
Falta muito. Não temos hoje nenhum tipo de protagonismo do aluno. Cabe a ele aceitar as regras, acatá-las, obedecer, comprometer-se com aquilo que a escola diz que ele deve se comprometer. Reverter esse quadro não significa reduzir o papel do professor, que continua firme. Nós temos que manter o papel do professor, mas o papel do aluno tem que mudar.
“Este estatuto de “blogueira” concede uma autoridade quase que profissional. Um perigo.”
E o protagonismo em casa, também é preciso?
Em casa é bem diferente, porque é um espaço privado, onde cada família tem as suas regras, os seus valores, e não cabe aos filhos tomar decisões. Eles podem opinar, colocar sua posição. Os pais ouvem, mas ouvir não significa aceitar, mas considerar. Alguns assuntos são passíveis de diálogo, outros não. Voltando à escola, o que não dá para negociar é se o aluno vai estudar ou não. Ele está lá para aprender.
É possível conciliar autoridade e diálogo com os filhos?
Dialogar é principalmente ouvir e não fazer sermão. Fazer esforço para entender a posição do outro. O diálogo não anula a autoridade, pelo contrário, a fortalece.
O diálogo é o que permite que a autoridade se desenvolva com maior eficácia?
Em algumas situações. Porque se não houver oposição, alguma coisa está errada, é porque pais e filhos abdicaram de seus papéis. É de se esperar que haja oposição. Acontece como no futebol: há regras e transgressões. Tanto se espera que haja infrações que está previsto um corpo de penalidades. Assim também na educação, há regras, mas há transgressões. E deveríamos deixar plenamente conhecido para os alunos e filhos estas punições, e não inventar de última hora.
Se não há muito como evitar o conflito, como lidar com esta contestação de uma maneira mais saudável?
Em primeiro lugar, aceitar que haverá conflito. Se o conflito de gerações desaparecer, o mundo não vai sair do lugar. Se não há contestação dos mais novos, o mundo vai ficar sempre igual. É de se esperar a contestação, é preciso trabalhar com ela. Como pais e professores representam aquilo que já aconteceu, é preciso transmitir esse arcabouço de conhecimento para os mais novos, deixando espaço para a inovação. A inovação está na mão dos mais novos. Dar espaço para o protagonismo do jovem não é inovar, é simplesmente respeitar.
Hoje há muitos grupos de mães, pais, nas redes sociais. É uma troca de experiências, mas também há relatos de dúvidas de ordem profissional que são respondidas por leigos com base na sua experiência. Qual é a sua avaliação?
Será que é algo novo? Antes, as pessoas saíam na calçada, colocavam cadeiras e ficavam conversando. Nesse momento, também trocavam ideias sobre os filhos. O que mudou foi o modo de fazer. A novidade para mim, que me parece estranho, é que algumas dessas pessoas conhecidas como “blogueiras” aparecem como especialistas no assunto tendo apenas a própria experiência. Isso é assustador. Porque quando as pessoas se reuniam na calçada sabiam que aquilo era apenas uma opinião, que podia estar certa ou errada. Hoje, este estatuto de “blogueira” concede uma autoridade quase que profissional. Um perigo.
“Toda esta baboseira, para convencer que “o aluno que tem ajuda vai melhor”. Mas não precisa de pesquisa para chegar a essa conclusão: todo mundo que tem ajuda vai melhor.”
Fala-se muito na confusão entre o papel dos pais e da escola. Por que você acha que há dificuldade em definir estas funções?
Você certamente já ouviu falar da Pátria Educadora. Então, até meados do século passado, a educação era de responsabilidade de duas instituições exclusivamente: escola e família. E cada um tinha um papel bem definido. Para aprender a escrever, fazer conta, tinha que ser na escola. Para aprender identidade pessoal, tinha que ser com a família. Com a mudança nas estruturas, hoje a cidade educa, a mídia, a televisão, a internet, tudo educa. Então nós vivemos em um momento muito confuso. Estamos em uma crise. Ou seja, nós saímos de uma situação, de um contexto com determinadas referências, e estamos em transição para outro, e não chegamos lá ainda. Isso significa que a família deve repensar seu papel, a escola (acho que ela não está fazendo) e a comunidade também. Tudo que eu consigo ver é a escola passar para os pais a parte do conhecimento que é dela. Então estou cansada de ver campanhas para os pais acompanharem as lições de casa, os trabalhos. Toda esta baboseira, para convencer que “o aluno que tem ajuda vai melhor”. Mas não precisa de pesquisa para chegar a essa conclusão: todo mundo que tem ajuda vai melhor. E o que eu mais ouço é que os pais estão terceirizando para as escolas. Mas o que eu vejo é a escola terceirizando para os pais.
Mais autonomia para o aluno pode ajudar?
Exatamente. Eu fiz um texto sobre agenda e perguntei para crianças de 9 a 15 anos “para que serve a agenda?” e a resposta foi quase unânime “para a minha mãe ver”. Mas acho que a gente tem que tomar cuidado com duas palavras que são distintas, mas que são usadas de maneira semelhante, que é autonomia e protagonismo. Autonomia é a capacidade de governar a própria vida. Isso a gente alcança na maturidade e nunca temos 100% porque há uma relação de interdependência que rouba minha autonomia. Agora, falar de autonomia de estudante em qualquer idade é sempre pensar dentro de um determinado contexto. Porque como eu disse agora há pouco, se ele tiver autonomia para ir para a escola e não estudar, como fica? Mas ele pode ser protagonista da vida escolar dele. Ninguém pode tudo. Nem você, nem eu, nem os pais, nem a escola. Porque sempre há um outro. Um exemplo: o uniforme dos alunos. Quem determina se eles vão usar ou não é a escola. Quem vai usar? São os alunos. Então caberia uma discussão com eles para ver se vamos usar ou não, vamos fazer alguns desenhos, variar modelos. Mas quando a gente diz que o uniforme é este e use, todos os dias nós temos transgressões. O desafio é estabelecer, construir uma relação democrática entre escola, pais e alunos, sem atravessar o lugar de cada um.
Como estabelecer uma relação? Esta é a grande pergunta. Esta relação que chamam de parceria e que não é. Porque hoje quando há reuniões entre os pais e a escola, os alunos não são chamados. De qualquer forma, não existe fórmula. Porque com esta diversidade contemporânea, cada ‘microcomunidade’ tem plenas condições de construir uma determinada organização escolar e, a partir disso, constituir uma relação entre escola e família. Mas ainda estamos muito acostumados com o século passado.
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