O conflito entre posseiros e comunidades indígenas, como o que acontece no Oeste do Paraná, é sintomático em todo o Brasil, segundo o sertanista José Carlos Meirelles. Ele, que integrou a Fundação Nacional do Índio (Funai) na década de 70 e que trabalha há 40 anos com povos isolados no Acre, afirma que a maior parte dos embates acontece por ausência do Estado. "Não acredito que o governo deva pregar algo anticonstitucional em um Estado de direito", diz, referindo-se às declarações da ministra-chefe da Casa Civil, Gleisi Hoffman (PT), de que os índios se apegam a crenças irrealistas que levam à contestação da construção da usina de Belo Monte, no Pará.
Existe uma alienação do Estado em relação às comunidades indígenas?
Entre a lei e o cumprimento da lei existe um abismo, que é a gente mesmo que cava. A rigor, é obrigação do Estado brasileiro garantir aos índios direito à terra, ao território, à saúde digna, enfim, ser considerado um cidadão, apesar de não pagar imposto. Mas existem as questões econômicas e políticas, que fizeram com que não se garantisse mais direitos na prática. Assim como aconteceu na época da borracha na Amazônia, agora temos um novo massacre anunciado que são as grandes obras de infraestrutura que não levam muito em consideração os povos vizinhos ou próximos a essas obras. Com relação à consulta prévia [estabelecida na convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT)], o que eu vi na Amazônia é que não existe consulta prévia nenhuma. Os caras chegam lá para comunicar. "Olha, vamos fazer uma obra aqui, tá?". Isso não é consulta prévia! A consulta prévia tem que ser anterior até mesmo ao projeto. Então temos a lei, mas ela não acontece.
A Constituição de 1988 reconhece o Brasil como um país multiétnico e concede direitos aos povos indígenas. De 88 para cá, como caminhou o avanço nesse tratamento?
Até mais ou menos 1998, 2000, tinha-se um avanço nessa área. De uns tempos para cá, houve uma mudança das forças políticas no Congresso Nacional. Você tem uma bancada ruralista muito forte, e uma bancada evangélica mais forte ainda, e que é parceira da bancada ruralista, e você tem o Supremo [Tribunal Federal] que resolveu legislar criando um monte de condicionantes quando deu o problema da [reserva indígena] Raposa Serra do Sol. Quem tinha que ter feito aquilo era o Congresso! Com essa mudança de forças, existem hoje vários projetos no Congresso para favorecer empreendimentos na Amazônia, de infraestrutura, de agronegócio, soja, etc. E eu acho que agora a máscara caiu. Pela primeira vez o Estado brasileiro resolve descaradamente admitir que os índios estão atrapalhando o PAC, atrapalhando Belo Monte. A ponto de senadores e a ministra-chefe da Casa Civil dizerem isso abertamente, e de há pouco tempo os fazendeiros invadirem a sede da Funai em Mato Grosso. Mas teoricamente, se o governo quiser parar com essa brincadeira [a construção de Belo Monte], ele pode. Porque isso é uma brincadeira de mau gosto, eu não acredito que o Estado deva pregar algo anticonstitucional. Se for assim, é melhor parar tudo e começar outra constituição. Isso não pode acontecer num Estado de direito. O que está acontecendo é um descaso com os direitos que esses povos têm garantidos pela lei. E isso está acontecendo às claras.
A queda de braço entre posseiros e índios no Oeste do Paraná e no Mato Grosso do Sul é sintomático desse descaso?
Isso está acontecendo em todo canto. Eu não conheço bem a região e não posso falar, mas tenho um exemplo para te dar. Quando eu entrei na Funai, na década de 70, foi feito o primeiro levantamento da Raposa Serra do Sol por um grupo de antropólogos. Naquele tempo, não tinha um invasor. Por que o Estado não demarcou logo aquela terra? Passam-se 40 anos para chegar lá e ver que tem arrozeiro, tem município, terra indígena... Ao não resolver essas questões de conflito fundiário, o Estado está criando um pepino enorme como esse. Como vai resolver agora? Uma reserva com município, com prefeito dentro? Isso é proibido por lei. Mas é um caso claro da ausência do Estado.
E, na sua avaliação, o que está dando certo?
Muita coisa. O pessoal malha muito a Funai, mas se não fosse a Funai a grande maioria dos povos indígenas não estaria mais aqui. Hoje, o Acre tem 98% das terras indígenas demarcadas e registradas, a questão fundiária indígena está praticamente resolvida. Os índios estão vivendo muito melhor do que em 1976 quando eu cheguei lá. Eles estão se organizando, alguns grupos deixaram a Funai para trás. Já fazem suas coisas independentemente do Estado, vendem urucum, fazem festivais. Os povos indígenas no Brasil estão aumentando, e isso é incontestável. Então, nem tudo é desgraça.
E o que precisa melhorar na Funai?
Tem muita coisa a ser feita. O maior salto de qualidade que a gente deu no trabalho com povos isolados foi estabelecer uma política clara sobre o que fazer com eles, e o Estado engoliu essa pílula. E eu acho que é isso que falta na Funai como órgão de Estado: estabelecer uma política clara sobre qual é a sua função institucional.
O governo não tem consultado os indígenas?
Não como eu acho que deveria consultar. Às vezes as consultas são dirigidas por questões de interesse. Você pega dois ou três índios de uma área, que não representam o grupo, e leva para Brasília, dá benesses para esse grupo e isso gera uma discórdia. Aquela coisa de dividir para conquistar. Essas consultas tem que ser feitas em aldeia. E se você ouvir os índios, vai ver que eles têm boas ideias para resolver problemas que a gente não resolve, porque eles estão na linha de fogo. O que não dá pra fazer é tentar resolver o problema depois que ele já aconteceu.