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A longa carta de Milton Heller

Milton Ivan Heller, em seu apartamento: jornalista e historiador na base da resistência | André Rodrigues/Gazeta do Povo
Milton Ivan Heller, em seu apartamento: jornalista e historiador na base da resistência (Foto: André Rodrigues/Gazeta do Povo)

Reza a lenda que um produtor do estúdio RKO assim se referiu a Fred Astaire, depois de um teste. "É baixinho, careca e dança um pouco." A frase figura no anedotário do cinema, mas serve como uma luva para o jornalista e pesquisador Milton Ivan Heller. Ele não é baixinho, nem careca, nem dançarino, mas qual Astaire, provou do pouco caso alheio: disseram que ele "escrevia pouco".

Heller é autor de quatro livros que desnudam a imprensa e a ditadura militar, assunto no qual se tornou referência nacional. É de sua autoria o já clássico Resistência democrática – a repressão no Paraná. Também publicou sobre o nazismo (Conspiração nazista nos céus da América), Coluna Prestes (De Catanduvas ao Oiapoque). Um cisco, como se dizia. Mas em início de carreira, nos anos 1940, ouviu impropérios como "não leva jeito para o ofício" e "não sabe redigir". Doeu. Décadas depois, os jornalistas que o alvejaram se tornaram seus subalternos. Não chegou a se vingar, mas não perdeu a piada, é claro.

"Eu dizia para eles que o que faziam estava mais ou menos", diverte-se o veterano, aos 83 anos, aposentado, mas sem se dar direito a descanso. Apenas em 2014, lançou A CIA e a quartelada e A atualidade do Contestado, publicados quando nem bem tinha terminado a divulgação de O prisioneiro da cela 310, uma biografia do empresário e ex-preso político Valmor Weiss. O Milton é assim – nasceu para o ofício da pena.

Na infância, era dado a longas cartas, mas nada indicava que iria mais longe do que isso. O pai – Jorge Heller – pertencia à comunidade dos russos alemães, fixada nos Campos Gerais. Dizia ter nascido na Sibéria. Foi lateral esquerdo do Ferroviário F.C, funcionário da Rede Ferroviária Paraná-Santa Catarina e da Panair do Brasil... Foi, sobretudo, um aplicado militante do Partido Comunista, atividade que o obrigava a longos períodos de clandestinidade – ou "cana", como a passada no Presídio do Ahú. "Convivemos pouco", conta Milton, que diz não ter escrito sobre o pai por pura timidez. "Não sou como o Sylvio Back, que sabe fazer barulho. A grande mídia me ignora, solenemente", provoca o homem que se define "um Requião": "Sou bom de briga".

"Melagrião"

Em paralelo ao Jorge idealista havia a mãe, Joana Vandrowski, uma polonesa típica. Junto dela, o comunismo nada tinha de utopia. Os Heller moravam com parentes num casarão de madeira do Bigorrilho, sem luz elétrica, muita religião e alguma vodca. "Sou do tempo da Minâncora, Óleo de Fígado de Bacalhau, Antissardina e xarope Melagrião". Todos os alimentos vinham do quintal – povoado de galinhas soltas e hortas de batata doce. Numa das raras ocasiões em que Jorge não era caça dos governantes, Joana deixou seu sítio urbano e se juntou ao marido, no Rio de Janeiro, formando uma família quase normal.

O exílio carioca durou oito anos e tinha endereço no subúrbio de Nilópolis. Na ocasião, Milton andou às turras com os estudos. Provou o gosto da boemia e da madureza de "trens tão apertados que nem dava para colocar a mão no bolso". Mal conseguia chegar às aulas no Instituto Rui Barbosa. Tirava uns trocos vendendo tapetes de porta em porta. "Eu me alimentava pouco, sufocava com o calor do Rio. Só tinha um uniforme. Dependia de um copo de limonada que as pessoas me davam."

Em 1949, de volta a Curitiba, e precisando de emprego, o tal talento para as cartas salvou a pátria. Uma tia manicure tinha um conhecido que trabalhava em jornal. Pediu arrego. O magrelo, cumprido, que nem sequer tinha passado pela admissão do ginásio, não foi saudado como um candidato ao Pulitzer. Fez-se de rogado e debutou em jornais como o Correio do Paraná, simpatizante do integralismo, e pelo Diário da Tarde.

Tec-tec

"Minha formação foi heroica", resume. Num dos diários em que atuou nos inícios – o panfleto "comuna" Tribuna do Povo – "aprendeu a pensar", como costuma dizer. Ninguém mais o segurou. Ele se perde ao listar os veículos nos quais datilografou laudas e laudas – do Diário Popular, passando pelo Diário do Paraná, O Estado do Paraná. Na sequên­cia, o Jornal do Brasil e revista Placar, que fizeram dele um "repórter nacional". A partir de 1973, coordenou a equipe de jornalismo da Rede Globo, em Belo Horizonte. Custava a acreditar que tinha um emprego tão bom – em especial depois da surpresa que o golpe militar de 1964 havia lhe reservado.

Em 1.º de abril de 1964, Milton Heller – então um jornalista com nome na praça – atuava como repórter do Última Hora, de Samuel Wainer, o único jornal a apoiar o presidente João Goulart. Com exceção dos colunistas sociais Celina Luz e Mauro Ticianelli, e da turma de esportes, toda a equipe foi processada pela Justiça Militar e passou quatro anos sem emprego. "MH" tinha dois filhos – Marli e João Eugênio.

Hoje consegue achar graça das tardes em que os 23 jornalistas processados, do UH e outros periódicos da cidade, passavam numa torturante salinha, a chaves, no quartel que havia na Praça Rui Barbosa. "Fumávamos horrores. Ficava uma cortina de fumaça. O jornalista Cícero Cattani levava um cortador de unha. O tec-tec do aparelhinho irritava os generais", lembra. Para pagar as contas, Heller voltou aos pendores de ambulante aprendido na juventude: vendia livros nas casas, benesse oferecida pelo livreiro Aristides Vinholes. "Avisei que era tido como um subversivo, mas ele era simpatizante e me ajudou."

O sucesso durou pouco. "Eu conseguia comercializar para os amigos. Para me ajudar, compravam até livro ruim. Quando minha lista de conhecidos acabou, as vendas caíram". Num lance de sorte, em 1968 conseguiu o carimbo que o livrou do processo de subversão. Retomou a carreira e até progrediu nas finanças. Num flerte com o mundo do capital, passou dos calhambeques de terceira mão a um carro quase zero, que estacionava longe dos colegas patrulheiros. Eram os anos do milagre econômico.

Milton Heller se aposentou em 1989 – somando 40 anos de redação. Suas últimas paragens, o jornal O Estado do Paraná e Gazeta do Paraná. Quando se viu em casa – sem pauta – deu início à rotina de pesquisador. Tornou-se rato da Biblioteca Pública, Instituto Histórico e Geográfico, e onde mais encontrar páginas amareladas, fungos e poeira. A quem interessar possa, recebe duas-três cartas por semana – são de seus leitores.

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