Certamente, ao refletir ou debater sobre a polêmica da liberação das drogas, o leitor já deve ter se deparado com argumentos sedutores a favor da descriminalização. “A legalização das drogas é o mais sensato a ser feito”; “a ‘guerra às drogas’ fracassou! É preciso uma nova alterantiva!”; “porque devemos encarcerar milhares de pessoas pelo uso de uma erva inofensiva?”; “O mundo inteiro está legalizando; porque o Brasil vai ficar para trás?” “Os impostos arrecadados com a venda da maconha legalizada pagarão com folga os custos de prevenção e tratamento.” São afirmações repetidas aos quatro ventos como premissas inafastáveis, e que, por tantas vezes marteladas, converteram-se em verdade intocável; quase um dogma. Esta percepção é compartilhada por Theodore Dalrymple, que afirma ser “possível observar uma progressão das mentalidades: num primeiro momento, o impensável se torna pensável. Mais tarde, torna-se uma ortodoxia cuja verdade parecerá tão óbvia que ninguém mais ousará lembrar que alguém já pensou a coisa de forma diferente. É exatamente isso que está acontecendo com a ideia sobre a legalização das drogas, sobre a qual já se chegou ao estágio no qual milhões de cérebros estão em unânime acordo.”[1]
Ocorre que a verdade parece estar um pouco além, e nosso objetivo é jogar luzes neste debate. Por isso, começo hoje, na Gazeta do Povo, uma série de artigos com a proposta de analisar criticamente os principais argumentos pró-liberação das drogas, à luz de fatos concretos e dados científicos. Como o leitor terá a oportunidade de conhecer, os propalados benefícios da legalização das drogas não passam de mitos, verdadeiro Cavalo de Tróia argumentativo que, além de não implicarem nas mudanças sociais positivas que preconizam, trazem riscos reais para o indivíduo e para a sociedade.
Nesse primeiro texto, vamos analisar o mito segundo o qual a maconha é uma erva inofensiva e que não causa dependência. Essa afirmação é de importância central para o “lobby” da maconha, afinal, a defesa de uma droga conhecidamente prejudicial não atrairia adeptos. Mostrar a maconha como uma droga inofensiva é condição essencial para que “o impensável se torne pensável”.
Ocorre que, diversamente do que se afirma, não é de hoje que os malefícios da maconha para o usuário e para a sociedade são conhecidos e reconhecidos por cientistas e estudiosos.
História
Nas Américas, a maconha foi introduzida inicialmente no México, por volta de 1530, por navegadores espanhóis. A maconha era usada em razão da sua fibra, que servia para fazer cordas e roupas. Com o passar do tempo, já no século 19 há relatos históricos de uso fumado da erva, inclusive em rituais religiosos de índios. Daí em diante, avolumaram-se os relatos de efeitos psicóticos causados pelo uso da maconha. Em estudo publicado em 1908 no Boston Medical and Surgical Journal, um médico que atendia em um campo de mineração relatou: “Meu pequeno acampamento de 700 ou 800 pessoas é uma clínica perfeita de histeria... causada pelo uso fumado de uma erva que cresce abundantemente nas colinas, chamada 'marihuana'.” O mesmo médico ressaltou que “[…] [a] excitação [causada pela erva] é extremamente violenta por dois ou três dias, exigindo contenção forçada: é acompanhada de alucinações."[2].
Também na Índia, onde a maconha era muito consumida legalmente, gerando forte arrecadação para a Coroa Britânica à época, a associação da droga a problemas psiquiátricos era uma realidade já no século 19. Em 1873, o Departamento de Finanças da Inglaterra publicou um relatório, em que afirmava sobre a maconha: “O uso habitual tende a produzir insanidade”. Em 1904, o Dr. George Francis Willian Ewens publicou um artigo no The Indian Medical Gazette, em que afirmou:
Há uma forma especial de doença mental atendida na Índia geralmente classificada como Insanidade Tóxica que parece ter uma relação direta com o uso excessivo de drogas de cânhamo. . . Os sintomas são quase inteiramente mentais, entre o grande número que já vi, ao contrário dos resultados de álcool, arsênico, etc.
(Apud Berenson, Alex. Diga aos seus filhos: A verdade sobre maconha, doença mental e violência (p. 11). Imprensa Livre. Edição do Kindle.) seeds.”)
Lala Kihal Chand, um dos representantes indianos em uma comissão criada pelo governo britânico para discutir a proibição da maconha, expôs a realidade sobre o uso da droga na Índia daquela época, afirmando que “as estatísticas mostraram que de 20 a 30% dos pacientes internados estavam doentes por causa da cannabis, e que cerca de 20% dos ‘lunáticos criminosos’ nos hospitais psiquiátricos de Bengala tinham um diagnóstico de insanidade relacionada à cannabis, muito mais do que aqueles cuja doença mental foi atribuída ao álcool ou ópio”[3].
Os malefícios da maconha perduraram ao longo dos anos, também sendo corroborados por estudos científicos atuais.
O jornal britânico Independent publicou uma reportagem em 2007 intitulada “Cannabis: An apology”. Já no subtítulo o jornal afirma que em 1997 lançou uma campanha para apoiar a discriminalização da droga, mas àquele tempo desconhecia seus malefícios, os quais, fossem conhecidos, não teriam permitido o lançamento da campanha de 10 anos antes.[4]
A reportagem traz dados relevantes: o número de adolescentes que necessitaram de tratamento em razão do uso de skunk aumentou 25 vezes entre 1997 e 2007; mais de 22.000 pessoas foram tratadas por vício em maconha em 1996. Especialistas ouvidos pela reportagem afirmaram que "a ligação entre cannabis e psicose é bastante clara agora; não era há 10 anos”[5] e que “ao menos 25.000 esquizofrênicos no Reino Unido poderiam ter evitado a doença se não tivessem usado cannabis”.[6]
Um estudo publicado na revista Lancet[7] também em 2007 traçou uma matriz de risco sobre o uso de vinte substâncias passíveis de abuso, a partir da avaliação de profissionais de diversas áreas, como químicos, farmacêuticos, cientistas forenses, psiquiatras e outros especialistas médicos. O resultado apontou a maconha como a 11ª substância mais perigosa, à frente do LSD, anabólicos esteróides e ecstasy.
Diversos outros profissionais ao redor do mundo, notadamente médicos, vêm reconhecendo a falácia da afirmação segundo a qual a maconha não causa dependência ou danos à saúde.
Para o Dr. David E. Smith, fundador da Haight Ashbury Free Medical Clinic in San Francisco e usuário de maconha de 1960 a 1988, "a maconha é uma droga perigosa e debilitante”, sendo que “a natureza da droga promove um grau de negação que é sutil e insidioso. Indivíduos que usaram maconha cronicamente podem estar anos em abstinência e recuperação de seu uso antes de se tornarem plenamente conscientes da extensão em que suas vidas foram danificadas por esse uso."[8]
De acordo com o National Institute on Drug Abuse[9], “o uso da maconha pode levar ao desenvolvimento do [...] transtorno do uso da maconha, que assume a forma de dependência em casos graves. Dados recentes sugerem que 30% dos que usam maconha podem ter algum grau de transtorno por uso de maconha[10]” .
Há indicativo de que “pessoas que começam a usar maconha antes dos 18 anos têm quatro a sete vezes mais probabilidade de desenvolver um transtorno por uso de maconha do que os adultos[11]” e que “os transtornos por uso de maconha costumam estar associados à dependência - na qual uma pessoa sente sintomas de abstinência quando não está tomando a droga.”
Além disso, apesar de os defensores da legalização não admitirem essa circunstância, há diversos estudos que corroboram a “hipótese de progressão”, ou seja, que a maconha é uma espécie de porta de entrada para outras drogas ilícitas. Segundo artigo de 2014[12], “embora a maioria dos estudos tenha mostrado um alto grau de associação entre o uso de cannabis e o uso de outras drogas ilícitas[13], os causadores da progressão da cannabis para drogas diversas permanecem amplamente desconhecidos[14].” Dentre as prováveis causas para a progressão são listadas, dentre outras, a maior frequência de uso de cannabis (Fergusson & Horwood, 2000; Mayet et al., 2012), o início precoce do uso de cannabis (Fergusson et al., 2006; Van Gundy & Rebellon, 2010) e a disponibilidade de drogas (Degenhardt et al., 2010). Um claro indicativo de que a legalização da maconha, e por consequência a maior facilidade no acesso à droga, tendem a propiciar o aumento de consumo de outras drogas mais pesadas.
Um outro dado relevante, mas que é ignorado no debate, é o de que hoje a maconha se tornou especialmente perigosa, devido ao aumento dos níveis de THC na planta, fruto de processos de modificação genética das mudas. Um estudo da Universidade do Mississipi mediu a concentração de THC em amostras de maconha recolhidas aleatoriamente com autoridades e demonstrou que em 1983 a concentração média de THC era de menos de 4% e hoje gira em torno de 10% (média), sendo que muitas amostras indicam concentração de 10 a 20%, e algumas com cerca de 30% de THC.[15] Isso maximiza os efeitos nocivos da maconha, já mencionados, o que inclusive já foi percebido pelos especialistas. A Holanda, por exemplo, reclassificou o skunk (maconha com alta concentração de THC), passando a considerá-lo uma “droga pesada”, mesma classe da cocaína.[16]
De fato, poderíamos citar centenas de estudos e artigos científicos que desmentem o argumento simplista de que “eu já usei e nunca tive qualquer problema”, a evidenciar que a maconha é uma erva maléfica e que causa dependência.
Restrição à maconha não é fetiche moralista
Ademais, a particularidade dos transtornos psíquicos causados pela maconha permite que se destaque um aspecto também pouco mencionado. É comum se ouvir dos defensores da maconha, especialmente quando confrontados com os inegáveis danos causados pela droga, que a proibição é uma medida moralista e paternalista do Estado, que quer proibir o uso de uma substância que pode fazer mal exclusivamente ao usuário. A afirmação revela completo desconhecimento das lamentáveis consequências causadas por doenças psicológicas graves como a psicose e a esquizofrenia, não apenas para o usuário, mas para seu círculo de convivência social.
Dalrymple identifica nesse apelo à liberdade individual a todo custo uma “histeria coletiva que exige a garantia de direitos associados a prazeres pessoais cada vez mais ampliados”, em detrimento da sociedade, e destaca a impossibilidade de se isolar o usuário e os efeitos decorrentes do uso continuado da droga. Segundo o escritor e médico, “o argumento filosófico [para justificar a legalização das drogas] diz que, numa sociedade livre, deve ser permitido aos adultos fazer o que lhes agrade, levando-se em conta que estejam preparados para assumir as consequências de suas próprias escolhas, e que não prejudiquem ou causem danos diretos a terceiros”. Ressalta aspecto relevantíssimo ao lembrar que “na prática, contudo, é extremamente difícil garantir que as pessoas assumam todas as consequências de seus próprios atos […]”, especialmente porque “a dependência química ou o uso regular de drogas não afeta apenas a pessoa que as consome, uma vez que não poupa cônjuges, filhos, vizinhos e empregadores de sofrerem consequências”, já que “nenhum homem, com a possível exceção de um eremita, é uma ilha”. Arremata Dalrymple afirmando que “a ideia de que a liberdade é a mera habilidade de um sujeito fazer valer os seus caprichos é um tanto quanto rasa, e mal consegue capturar as complexidades da existência humana; um homem cujos apetites são sua lei nos chama a atenção não como alguém liberto, porém escravizado. E quando uma liberdade tão estreitamente concebida transforma-se no critério das políticas públicas, a dissolução da sociedade estará próxima”.
O que se pretende mostrar, portanto, é que a restrição ao uso das drogas, inclusive da maconha, não decorre de um fetiche moralista ou de proibições sem fundamento, mas da constatação, em concreto e com base em evidências científicas, dos efeitos nefastos das drogas para o usuário e para a sociedade, não obstante o lobby das drogas insista em afirmar o contrário.
Aliás, uma outra estratégia dos defensores da legalização das drogas, ainda no esforço de apresentar a maconha como uma substância benéfica, o que levaria ao descabimento de sua proibição, é atrelar a queda da proibição ao uso medicinal da maconha. Há aqui um outro articífio, sobre o qual nos ocuparemos no próximo texto, que demonstrará que as propriedades medicinais da maconha em nada têm a ver com a legalização da droga.
* Lucas Gualtieri é Procurador da República. Ex-membro auxiliar do Procurador-Geral da República na Secretaria da Função Penal Originária no Supremo Tribunal Federal (2018). Membro Auxiliar da Procuradoria-Geral da República na Assessoria Jurídica Criminal no Superior Tribunal de Justiça. Coordenador do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado do Ministério Público Federal em Minas Gerais. Pós-Graduado em Controle, Detecção e Repressão a Desvios de Recursos Públicos (UFLA); Pós-Graduado em Direito Público (UNIDERP). Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Estado de Minas Gerais.
[1] Dalrymple, Theodore. Nossa cultura… ou o que restou dela: 26 ensaios sobre a degradação dos valores. Tradução: Maurício G. Righi. São Paulo: É realizações Ed., 2015, p. 263.
[2]Apud Berenson, Alex. Tell Your Children: The Truth About Marijuana, Mental Illness, and Violence (p. 31). Free Press. Edição do Kindle.
[3]Apud Berenson, Alex. Tell Your Children: The Truth About Marijuana, Mental Illness, and Violence (p. 10). Free Press. Edição do Kindle.
[4]Disponível em: https://www.independent.co.uk/life-style/health-and-families/health-news/cannabis-apology-5332409.html
[5]Professor Colin Blakemore, chief of the Medical Research Council, responsável pela campanha do Independent em 1997.
[6]Professor of Psychiatry Robin Murray of London’s Institute of Psychiatry.
[7]NUTT, David; A. KING, Leslie; SAULSBURY, William; BLAKEMORE, Colin. Development of a rational scale to asses the harm ou drogs of potential misuse. Lacent 2007; 369: 1047-53. Disponível em: https://www.thelancet.com/action/showPdf?pii=S0140-6736%2807%2960464-4
[8]Sabet, Kevin. Reefer Sanity (p. 27). Beaufort Books. Edição do Kindle.
[9]National Institute on Drug Abuse website. https://www.drugabuse.gov/publications/research-reports/marijuana/marijuana-addictive. July 2, 2020.
[10]Hasin DS, Saha TD, Kerridge BT, et al. Prevalence of Marijuana Use Disorders in the United States Between 2001-2002 and 2012-2013. JAMA Psychiatry. 2015;72(12):1235-1242. doi:10.1001/jamapsychiatry.2015.1858.
[11]Winters KC, Lee C-YS. Likelihood of developing an alcohol and cannabis use disorder during youth: Association with recent use and age. Drug Alcohol Depend. 2008;92(1-3):239-247. doi:10.1016/j.drugalcdep.2007.08.005.
[12]Secades-Villa R, Garcia-Rodríguez O, Jin CJ, Wang S, Blanco C. Probability and predictors of the cannabis gateway effect: a national study. The International Journal on Drug Policy. 2015 Feb;26(2):135-142. DOI: 10.1016/j.drugpo.2014.07.011. Disponível em: http://europepmc.org/article/PMC/4291295
[13]Agrawal, Neale, Prescott, & Kendler, 2004; Fergusson & Horwood, 2000; Khan et al., 2013; Lynskey et al. , 2003; O'Donnell & Clayton, 1982; Van Ours, 2003.
[14] Kandel et al., 2006; Van Gundy & Rebellon, 2010.
[15]Meserve, J. and Ahlers, M.M. (2009, May 14). Marijuana potency surpasses 10 percent, U.S. says. CNN. Retrieved from http://www.cnn.com/2009/HEALTH/05/14/marijuana.potency/index.html?iref=allsearch.
[16]Vide: https://www.dailymail.co.uk/debate/article-2047750/The-grass-greener-Holland.html
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