Ao conhecer de perto as atividades do Grupo Lanteri, é comum alguém sair com uma pergunta à queima-roupa: “Por que vocês não escrevem um livro?” Os três dirigentes da companhia – Aparecido Massi, Júlio César Miranda do Rosário e Edson Martins – admitem que pensam no assunto. O problema é que ano após ano, todas as energias são consumidas em colocar na praça o principal produto da trupe – A Paixão de Cristo, encenada na Sexta-Feira Santa. A montagem faz jus ao nome: traz alegria aos participantes, mas não sem antes levá-los ao calvário.
A via-sacra de uma companhia de
teatro popular
O Grupo Lanteri sabia que 2015 seria de penúria, antes mesmo da drástica redução de público autorizada a entrar na Pedreira Paulo Leminski. A crise econômica está a olhos vistos e os editais da Fundação Cultural de Curitiba saíram apenas no início do ano. Como não existe coelhinho da Páscoa, restou à trupe arejar o barracão que aluga na CIC ...
Leia a matéria completaEm 37 anos de apresentações ininterruptas para o grande público – antes disso, o espetáculo ficava restrito à Vila São Paulo, no Uberaba, onde surgiu – o Lanteri passou por toda sorte de provações. Quando Massi-Miranda-Martins pensam que passaram por todas as penitências – da falta de dinheiro à falta de espaço, quando não as duas coisas –, são brindados por uma paga ainda maior. A edição de 2015 é o caso. Se o tal livro fosse escrito este ano, viraria um título de autoajuda: Como montar uma Paixão impossível e não desistir.
Nos dois últimos anos, a Paixão foi encenada no BioParque, na divisa com São José dos Pinhais. A acústica é boa. O público prestigiou, mas à revelia de ser um projeto popular, formado por impressionantes 1,2 mil voluntários, o grupo tem as suas vaidades. A exemplo de qualquer companhia que faz desse ou daquele teatro a sua casa, a casa do Lanteri é a Pedreira Paulo Leminski. Ali viveu seus melhores momentos, como uma encenação de Júlio César, de Shakespeare, nos 300 anos de Curitiba; e uma Sexta-Feira Santa pop, na década de 1990, com 32 mil pessoas na plateia, todas empunhando velas. Detalhe: informalmente, um dos diretores era o então prefeito Rafael Greca de Macedo.
“Teve até ator andando sobre as águas da Pedreira, tamanha a produção. Eu mesmo recebi orientações do Greca pelo retorno [fone de ouvido], durante a apresentação”, diverte-se Massi, por décadas dono do principal posto da Paixão, o de Cristo. O papel fez desse londrinense o artista mais popular de Curitiba, até que Alexandre Nero prove o contrário.
Nada mais natural que o Lanteri voltasse para o ninho. Mas os dirigentes mal esperavam que teriam a menor audiência proporcional das últimas quatro décadas – apenas 2 mil pessoas poderão assistir à apresentação de hoje à noite, quando o normal é chegar a 15-20 mil. O fato merece um rodapé no Livro dos Recordes – vai haver quase tanta gente na plateia quanto em cima do palco. A explicação para o disparate é simples do ponto de vista técnico, lamentável do ponto de vista das políticas culturais. Resta saber quem pecou – a Fundação Cultural, a prefeitura, o Ministério Público, os novos manda-chuvas da Pedreira ou o próprio Lanteri.
Em 2013, a administração da Pedreira foi arrendada para a concessionária RD7. Para voltar a funcionar, depois de seis anos de jejum – decretados debaixo da grita dos moradores do Abranches, irritados com o barulho dos shows –, firmou-se um termo de ajustamento. O espaço pode receber dois espetáculos por mês, com limite de 25 mil ingressos cada vez. Fora dessa conta, qualquer outro evento não pode passar de 2 mil pessoas. Aconteceu na FanFest, durante a Copa 2014. Aconteceu agora com o Lanteri.
A informação chegou com atraso ao Lanteri – precisamente depois do Domingo de Ramos. A ironia é instantânea: a Paixão faz parte do calendário da cidade e incomoda menos que uma quermesse de bairro, a não ser que a vizinhança tenha alguma ojeriza às trilhas de Ennio Morricone. Começa às 19 e acaba às 21 horas. Ônibus conduzem o comportado público da Praça Rui Barbosa à Rua João Palomeque.
A prefeitura havia destinado R$ 30 mil à apresentação deste ano. Depois de passar o chapéu – etapa que o trio julga a mais revoltante –, o Lanteri viu o investimento engordar para R$ 80 mil, o que não é nenhum refresco. A quantia cobre os gastos com a contratação de som e luz. Sobraram mil reais para a maquiagem – sendo que um pote de pancake chega a R$ 40. Os mais de 800 figurantes vão ter de dar mais esse dízimo. O mesmo vale para o lanche dos ensaios, agora rateado entre as “lanterianas” da terceira idade. Massi pagou o papel higiênico, que parece não estar incluído no “termo de ajustamento”. E resta rezar: até que a verba municipal pingue, os gastos estão debitados no cartão de crédito da diretoria.
No ensaio geral da última quarta-feira, o “núcleo duro” do Lanteri se esforçava para manter os ânimos em alta. O bom humor dessa turma é pura autoajuda. “Até o momento em que, na peça, Cristo entra em Jerusalém, tem uma mosca varejeira atrás da gente”, compara Massi. Ele se refere ao escritório de arrecadação de direitos autorais, o Ecad; o Corpo de Bombeiros e a RD7, atrás de cadastros, uma dificuldade, sendo que parte da companhia é formada por centuriões e piedosas de ocasião. No Rio há foliões que se alistam nas escolas de samba, para ver como é que é. Em Curitiba, muitos fazem o mesmo entrando para a Paixão do Lanteri.
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