Mais que um repositório para os restos mortais do ente querido, o túmulo muitas vezes se torna portador de um discurso construído pela memória e saudade. Não raro, principalmente nos cemitérios oitocentistas, jazigos foram transformados em memoriais onde o morto é o protagonista de um discurso visual repleto de significados. Sejam talhadas em mármore ou forjadas em bronze, as esculturas – nesse caso feitas sob medida – retratam o morto em um momento significativo de sua trajetória ou junto de objetos que caracterizam profissão e gostos pessoais.
Os cemitérios paulistanos estão repletos desse tipo de arte. Imigrantes que vieram ao Brasil tentar uma nova vida e que aqui encontraram a prosperidade foram retratados em tamanho natural, muitas vezes figurando entre cenas bíblicas ou ladeados de relevos que recontam suas trajetórias. Já no Rio de Janeiro, o destaque é dado àqueles que amealharam títulos de nobreza, como viscondes, barões, marqueses entre outros. São bustos ou esculturas jacentes entre alegorias que lembram aos vivos a importância um dia conquistada pelo morto.
Mas não apenas de personalidades públicas são constituídos esses túmulos-memoriais. Há aqueles que trilharam um caminho silencioso em meio à multidão, anônimos agora notórios por sua presença perene nas necrópoles. No Cemitério Municipal São Francisco de Paula, em Curitiba, está o ferreiro Berti, retratado junto de seus instrumentos de trabalho, e o jovem Pierino Riva, cuja estátua, forjada na Itália, reitera seu gosto pela leitura, ao representá-lo segurando um livro.
Já nas primeiras quadras do cemitério, uma escultura em mármore de Carrara perenizou uma breve, mas marcante história. Trata-se da menina Lucy, filha do imigrante alemão e comerciante Carlos Meissner e de sua esposa, Elisa. A história, passada entre as gerações da família Meissner, conta que seus pais ganharam mudas de flores vindas de Buenos Aires. Tão logo Elisa as recebeu, plantou-as no jardim. Lucy, encantada com o colorido das flores, decidiu colher todas, usando a barra de seu vestido para carregá-las. Entrou em casa correndo e foi mostrar aos pais o mais novo achado. Sua mãe, ao perceber a destruição do belo jardim, pensou em repreendê-la, mas diante da alegria e da inocência de Lucy, não teve coragem. O pai ria da travessura da filha.
Dias depois, Lucy adoeceu, morrendo vítima do crupe, em junho de 1895. A imagem da cena vivida pela menina, sua alegria e inocência, marcou profundamente seus pais. Em uma das viagens de negócio que fazia à Europa, para trazer produtos para a Casa da Louça, da qual era proprietário, Carlos foi à Itália e encomendou a escultura que figurava o momento vivido por Lucy. Diferentemente das famílias que encomendavam a feitura dos túmulos via catálogos ou diretamente dos artistas, decidiu ele mesmo trazer a escultura durante a viagem de navio.
Para um desavisado, a escultura pode sugerir apenas a cena em que uma criança presta homenagem aos seus entes queridos. Para a família Meissner, representa uma história marcante, passada de pai para filho, ultrapassando já a terceira geração. As flores carregadas em seu vestido não deixam de sugerir o gesto da homenagem e da rememoração dos mortos. É possível encontrar réplicas de esculturas como a de Lucy em outros cemitérios, principalmente em países europeus, mas nenhuma outra representa uma história tão singela e marcante. Nenhuma outra é Lucy.