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Entrevista

A mulher que chama a mídia para a briga

A psicóloga Paula Gomide figura entre aqueles que não vieram ao mundo para agradar. Basta que se pronuncie para que vozes saiam do alto dos prédios e das galerias subterrâneas para contradizê-la. Ela parece não se importar – é o preço que se paga por ter opinião numa época regida pelo bom-mocismo corporativo. Não por menos, uma boa polêmica sempre é regada com sua presença, em especial na área da infância e da adolescência – desde a década de 80 seu campo de batalha, quando passou a trabalhar no Educandário São Francisco.

Até o ano passado, Paula estava à frente do Projeto Fênix – unidade de cumprimento de medidas socioeducativas do Instituto de Ação Social do Paraná, em Piraquara, voltada para adolescentes considerados de alta periculosidade. Atendia de parricidas a jovens cooptados pelo crime organizado. O sonho de formar uma rede para ex-internos acabou, mas não os outros. Ainda acompanha rapazes com histórico semelhante e se diverte com o susto dos amigos. "Eles dizem: 'lá vem a Paula com seus temas agradáveis'", diverte-se.

Mas há outro território em que Paula se movimenta com destreza – a dos estudos de mídia e comportamento. A terapeuta e professora aposentada da UFPR – hoje docente da Faculdade Evangélica - já capitaneou cinco pesquisas sobre o assunto, principalmente sobre os efeitos da exposição das crianças a programas violentos na televisão.

Conservadora, contraditória, arrojada, não importa o adjetivo, Paula chama para a briga e diz que games e filmes em que espingardas cospem fogo põem a piazada nos nervos. Sobram estilhaços para pais e professores, aos quais, depois de servir pimenta, oferece programas, jogos, idéias simples de gerir.

Os métodos não assustam: tarefas executadas entre pais e filhos e estabelecimento de pequenos limites cotidianos. Para a escola, serve sugestões como promover a polidez e as boas maneiras. "Têm de ensinar a pedir 'por favor' e 'com licença'", diz. Confira trechos da entrevista à Gazeta do Povo.

Até que ponto se pode afirmar que o conteúdo violento da televisão altera o comportamento das crianças?

Há muitos estudos nessa linha, do Japão aos Estados Unidos, passando por Austrália, Nova Zelândia, Brasil, México... Todos mostram – com metodologias diferentes – que crianças e adolescentes que assistem a programas com conteúdo agressivo têm o comportamento alterado. É uma unanimidade científica. Os meios de comunicação não só podem como alteram atitudes. Os pais podem observar essas mudanças logo depois que a criança assiste à tevê. No intervalo, muitos garotos já estão se socando.

Que criança está mais suscetível a essa influência?

A pesquisadora argentina Merlo-Flores verificou que crianças com pouca assistência dos pais estão mais sujeitas à influência de personagens violentos. Elas os copiam. A criança pequena não consegue entender que a cena de uma novela, por exemplo, é parte de um processo. Quando vê o mal se dando bem entende que um comportamento daquele tipo leva ao sucesso. Mesmo que o personagem morra e não se dê bem no final da novela, ela não vai fazer essa ligação. E o que temos visto nos folhetins é que o mau acaba em Paris, tomando champanhe. Há carência de modelo morais na tevê. Novelas mostram mais comportamentos inadequados do que existem na vida real.

Não lhe parece ultrapassado culpar a mídia? A criança não fica muito mais tempo exposta à família e à escola do que à tevê?

Fiz uma pesquisa aqui em Curitiba para saber quantas horas as crianças ficavam em frente a televisão. Passam, em média, 26 horas por semana. São quase quatro horas por dia. Temos quatro horas de programas educativos? Quando se vai para as camadas mais empobrecidas, o índice aumenta. As classes médias têm mais alternativas de lazer.

É possível aprender a ver televisão?

Há três anos, fiz um programa chamado "Educação para a Mídia", pensado como uma alternativa para ensinar a ver televisão. O educador explica para as crianças que existem programas educativos e violentos e as ajuda a formar conceitos. Depois, vai-se à procura de atrações que estejam de acordo com as idéias discutidas. Por fim, os participantes fazem um jornalzinho com o resultado da investigação. Nesse processo, assistimos a vários filmes e tenho oportunidade de avaliar reações. No final, terminamos com teatro – no qual os alunos agem.

A sociedade brasileira lhe parece permissiva demais em relação à tevê?

Sim. Por que tantos programas mostrando quantos morreram no Iraque? Qual o efeito psicológico disso? Quem fica exposto demais a tal tipo de informação tende a ficar pouco solidário. Perde a capacidade de se colocar no lugar do outro. A morte e a violência ficam banalizadas. Passa-se a achar que o que se vê não é realidade. Os psicólogos chamam essa reação de "neutralidade das emoções". Tende-se a achar tudo isso natural porque ninguém pode ficar exausto o tempo todo. A mídia faz isso – exaure emoções que deveriam ser produtivas.

Que papel cabe aos pais?

Saber a função dos programas. Produtos violentos têm de ser vistos com pouca freqüência. E as crianças devem ter horários em companhia dos pais. O único horário em que a família está reunida para trocar experiências é desperdiçado com a televisão. Indico que pais e filhos façam tarefas juntos. É preciso achar algum horário em comum – um que seja.

O que mais lhe impressiona na televisão hoje?

Os personagens das novelas gritam demais (risos). Não suporto. Por que se insultam tanto? Trabalhar o dia inteiro e ter de escutar aquela gritaria... E esse Big Brother. É um jogo, mas o diálogo é pobre, com atitudes mais pobres ainda. Me impressiona que produtos como esse tenham tamanha popularidade.

Fala-se muito da violência na tevê. E a erotização?

Os pais não sabem lidar com a erotização. Todos querem ser modernos, amigos dos filhos, e acabam deixando de ser pais. Eles devem ser compreensivos, mas o comportamento de amigo não é próprio dos pais. Amigo não dá limite. Com a sexualidade, idem. Crianças abusadas sexualmente não aprenderam a se prevenir. Ela tem de ser treinada para se proteger de um adulto desconhecido. Mas como explicar o que é um pedófilo? É preciso dar explicações simples.

Qual a sua posição em relação ao controle da programação?

Se os pais não conseguem avaliar por si só o que é inadequado para seus filhos, o sistema tem de avaliar. Não se deve proibir, mas colocar certas atrações em horários adequados. Agora, se o pai deixa a criança ficar acordada até tarde, a responsabilidade é dele. Criança tem de dormir nove horas por noite. E basta.

Por que a sociedade brasileira patina tanto nessa discussão? É quase um clássico?

Até 1950, a sociedade vivia um padrão. As mulheres casavam virgens e com a anuência dos pais. Depois disso, ganharam liberdade sexual e profissional. A tendência foi jogar fora as regras anteriores. Mas se jogou tudo fora. O que encontramos hoje são adolescentes que odeiam os próprios pais porque eles não lhe deram limites. Quando chegam aos 15 anos e se vêem diante da tentativa dos pais em mudar comportamentos, lembram que quando tinham dois anos só comiam batata-frita e ninguém fazia nada. Sempre digo que escovar os dentes, ir para a escola e comer não são negociáveis. Nada tem a ver com liberdade. Não quero dizer que os pais devam ser supervisores estressantes (risos), desses que ditam 500 mil regras. Mas algum limite tem de ser dado.

Paula Gomide, psicóloga.

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