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Protagonismo

A música que opera os milagres

Ao dedilhar a teorba e suas 14 cordas, Silvana traz o universo histórico da música para mais perto da garotada | Henry Milléo/ Gazeta do Povo
Ao dedilhar a teorba e suas 14 cordas, Silvana traz o universo histórico da música para mais perto da garotada (Foto: Henry Milléo/ Gazeta do Povo)

Ao dedilhar suavemente as 14 cordas da teorba, Silvana Scarinci transporta e é transportada ao século 17, berço da ópera barroca. Foi a melodia do instrumento que a inspirou a estudar a história da música antiga e a desenvolver um projeto para tornar obras barrocas acessíveis a crianças da rede pública de ensino – iniciativa que lhe rendeu a indicação, pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), ao Prêmio Claudia 2014 na categoria Cultura.

Radicada há seis anos em Curitiba, onde é coordenadora do Laboratório de Música Antiga (Lamusa) da UFPR, a pesquisadora musical já produziu seis espetáculos, todos inéditos por aqui – como Orfeo dolente, de Belli, e A bela e fiel Ariadne, de Conradi. Antes que subam as cortinas do teatro, a equipe liderada por Silvana realiza um trabalho de sensibilização com as crianças, para que conheçam a história narrada e os instrumentos que compõem a orquestra.

"A ópera opera milagres. São obras longas, geralmente em italiano, e mesmo assim as crianças ficam hipnotizadas pelo espetáculo. A reação é impressionante, elas recebem muito bem", conta. Para ela, transpor para a sociedade o que acontece no meio universitário, restrito, é o melhor papel que a universidade pode exercer.

A indicação a um prêmio que reconhece o protagonismo feminino foi uma boa surpresa. "Recebi a notícia no dia do aniversário da minha mãe, então foi emocionante. A indicação da universidade foi uma boa surpresa, porque é um reconhecimento em um universo muito grande de gente trabalhando. É sempre bom saber que somos vistos."

Incomuns

O trabalho realizado por Silvana vai muito além da mera reprodução de óperas antigas. Para montar obras incomuns até mesmo no repertório erudito, ela promove uma imersão ao universo no qual foram compostas e executadas originalmente, preservando a concepção original da peça, o que engloba desde a maneira como os solistas cantam até os instrumentos históricos utilizados, como é o caso da teorba e do cravo. A produção das óperas envolve cerca de 75 pessoas, todas voluntárias.

"Nós buscamos fazer a música do passado com as devidas exigências históricas do período. Resgatamos uma série de tratados que nos dizem como era a voz, o canto, os ornamentos, os instrumentos. É uma performance historicamente orientada", explica.

O interesse pela música antiga foi herdado. Os avós de Silvana faziam música de câmara em casa; sua mãe, cantora lírica, e a tia, regente, criaram um madrigal em Porto Alegre, quando eram jovens, para ensaiar obras medievais, renascentistas e barrocas.

"Tenho a lembrança de, criança, escutar óperas de Monteverdi, sem sequer imaginar que ele seria central na minha vida". O italiano é, até hoje, o preferido de Silvana. "Se precisasse levar uma música para uma ilha deserta, seria 'O Lamento da Ninfa', de Monteverdi. É uma obra de 1624 e retrata a primeira cena de loucura da história." Hoje, além de profissão, a música é também questão de saúde emocional. "Não posso viver sem. Quero sempre voltar para o meu instrumento e acessar minhas emoções por meio dele."

Mulher surge como cantora no século 17

Silvana identificou nas partituras um prolífero campo de estudos de gênero, pois as óperas barrocas marcam o surgimento das primeiras cantoras e personagens femininos. "Subir ao palco significava ter voz em um período em que as mulheres deviam ficar de boca fechada."

Segundo ela, as obras revelam hábitos reproduzidos até hoje: às mulheres cabia interpretar subjetividade e emoções proibidas aos homens, como tristeza e loucura. Esses trechos são chamados "lamentos": os momentos profundos e trágicos da ópera. "A mulher devia proporcionar o contato com a alma humana. Os lamentos masculinos são cômicos, fazem troça do feminino."

Um olhar um pouco mais atento sobre as narrativas barrocas mostra como a representação da mulher no palco variava conforme o momento e o lugar em que a ópera era composta. Silvana cita Dido, personagem da Eneida, de Virgílio: a primeira rainha de Cartago que, apaixonada, entrega-se ao forasteiro Enea. Quando ele parte em missão, ela se mata.

Ao ser recuperada por Cavalli, a história é contada ao modo veneziano: Dido é retratada como meretriz, pois uma rainha não poderia amar um forasteiro. Porém, óperas italianas deviam ter final feliz. Assim, Dido se redime ao aceitar o amor de um rei, como cabia às mulheres da época. Quarenta anos depois, a saga voltou a ser contada na Inglaterra, por Purcell. Sem final feliz, Dido morre no fim. "Sempre há convenções sociais. A ópera italiana é linda, mas tem esse viés misógino. Já em Purcell, Dido é elevada. A Inglaterra tinha uma simpatia pelas mulheres."

Teorbista resgata a história da ópera barroca

A paixão de Silvana Scaranci pela teorba, instrumento musical do período barroco, motivou o desenvolvimento de projeto que leva óperas antigas para crianças da rede pública de ensino. O reconhecimento da iniciativa veio com a indicação da pesquisadora ao prêmio Cláudia 2014 na categoria Cultura.

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