Ao dedilhar a teorba e suas 14 cordas, Silvana traz o universo histórico da música para mais perto da garotada| Foto: Henry Milléo/ Gazeta do Povo

Timbre

Teorba é o instrumento cúmplice da voz

Foi a teorba quem apresentou Silvana à ópera barroca, após 20 anos dedicados ao violão clássico. O instrumento da família dos alaúdes foi criado na Itália, por volta de 1600, para atender às necessidades estilísticas da época. No barroco, há a figura do cantor solista, que deve cantar com virtuosidade e precisa de um instrumento que sustente sua voz: a teorba.

O som produzido pelo instrumento é suave, cúmplice do canto que a acompanha – Monteverdi, um dos grandes gênios da época, dizia que a palavra é soberana e a música, sua serva. "É uma melodia muito sensual, apropriada para a música da época, que fala de sentimentos muito contrastantes, como ódio, abandono e traição, para depois falar de ternura e paixão. A teorba consegue acompanhar essa profusão de emoções porque possui muitas sutilezas tímbricas", destaca Silvana.

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Elas por elas

No século 17, só três tipos de mulheres compunham e cantavam óperas - as freiras, as cortesãs (que recebiam educação completa como a de um homem da corte) e as divas (cantoras profissionais que circulavam no meio da ópera). Veja os exemplos:

A freira: Isabella Leonarda

Isabella nasceu em 1620 e, aos 16 anos, ingressou no convento. Ela ficou conhecida pelo grande número de composições que criou durante a vida no convento, tornando-se uma das compositoras mais prolíferas do seu tempo. Sua obra contém exemplos de quase todos os gêneros sagrados: concertos sagrados, diálogos latinos, salmos, ladainhas, missas e sonatas – essas últimas, inclusive, foram as primeiras sonatas a serem publicadas por uma mulher.

A cortesã: Barbara Strozzi

Dona do epíteto "La virtuosissima cantratrice" (a cantora virtuosa), foi uma compositora e cantora barroca. Barbara nasceu em Veneza em 1619. Era filha ilegítima de Giulio Strozzi. Ela foi uma cortesã famosa, em uma época em que cortesãs eram as únicas mulheres educadas para circular no meio intelectual majoritariamente masculino. Muitas vezes eram convocadas a entreter homens poderosos e participavam da política indiretamente, exercendo influência sobre aqueles que decidiam. Por ser cortesã, não cantava em óperas no sentido estrito, porém, compôs oito volumes de cantatas – algo inimaginável para uma mulher na época.

A diva: Anna Renzi

Nascida em 1620 na Itália, a soprano é considerada a primeira diva da história da ópera – termo utilizado para designar as grandes cantoras de ópera. Anna foi reconhecida pela habilidade vocal que lhe permitia representar todo tipo de personagem. Compositores da época escreviam papéis especialmente para ela, aproveitando todo o potencial de sua voz. Assim, a maioria de suas interpretações intercalavam cenas violentas, cômicas e trágicas, revelando o domínio de palco. Os últimos registros sobre Anna constam de 1661.

Ao dedilhar suavemente as 14 cordas da teorba, Silvana Scarinci transporta e é transportada ao século 17, berço da ópera barroca. Foi a melodia do instrumento que a inspirou a estudar a história da música antiga e a desenvolver um projeto para tornar obras barrocas acessíveis a crianças da rede pública de ensino – iniciativa que lhe rendeu a indicação, pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), ao Prêmio Claudia 2014 na categoria Cultura.

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VÍDEO: assista à apresentação musical de Silvana Scarinci com a teorba e saiba mais sobre o instrumento

Radicada há seis anos em Curitiba, onde é coordenadora do Laboratório de Música Antiga (Lamusa) da UFPR, a pesquisadora musical já produziu seis espetáculos, todos inéditos por aqui – como Orfeo dolente, de Belli, e A bela e fiel Ariadne, de Conradi. Antes que subam as cortinas do teatro, a equipe liderada por Silvana realiza um trabalho de sensibilização com as crianças, para que conheçam a história narrada e os instrumentos que compõem a orquestra.

"A ópera opera milagres. São obras longas, geralmente em italiano, e mesmo assim as crianças ficam hipnotizadas pelo espetáculo. A reação é impressionante, elas recebem muito bem", conta. Para ela, transpor para a sociedade o que acontece no meio universitário, restrito, é o melhor papel que a universidade pode exercer.

A indicação a um prêmio que reconhece o protagonismo feminino foi uma boa surpresa. "Recebi a notícia no dia do aniversário da minha mãe, então foi emocionante. A indicação da universidade foi uma boa surpresa, porque é um reconhecimento em um universo muito grande de gente trabalhando. É sempre bom saber que somos vistos."

Incomuns

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O trabalho realizado por Silvana vai muito além da mera reprodução de óperas antigas. Para montar obras incomuns até mesmo no repertório erudito, ela promove uma imersão ao universo no qual foram compostas e executadas originalmente, preservando a concepção original da peça, o que engloba desde a maneira como os solistas cantam até os instrumentos históricos utilizados, como é o caso da teorba e do cravo. A produção das óperas envolve cerca de 75 pessoas, todas voluntárias.

"Nós buscamos fazer a música do passado com as devidas exigências históricas do período. Resgatamos uma série de tratados que nos dizem como era a voz, o canto, os ornamentos, os instrumentos. É uma performance historicamente orientada", explica.

O interesse pela música antiga foi herdado. Os avós de Silvana faziam música de câmara em casa; sua mãe, cantora lírica, e a tia, regente, criaram um madrigal em Porto Alegre, quando eram jovens, para ensaiar obras medievais, renascentistas e barrocas.

"Tenho a lembrança de, criança, escutar óperas de Monteverdi, sem sequer imaginar que ele seria central na minha vida". O italiano é, até hoje, o preferido de Silvana. "Se precisasse levar uma música para uma ilha deserta, seria 'O Lamento da Ninfa', de Monteverdi. É uma obra de 1624 e retrata a primeira cena de loucura da história." Hoje, além de profissão, a música é também questão de saúde emocional. "Não posso viver sem. Quero sempre voltar para o meu instrumento e acessar minhas emoções por meio dele."

Mulher surge como cantora no século 17

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Silvana identificou nas partituras um prolífero campo de estudos de gênero, pois as óperas barrocas marcam o surgimento das primeiras cantoras e personagens femininos. "Subir ao palco significava ter voz em um período em que as mulheres deviam ficar de boca fechada."

Segundo ela, as obras revelam hábitos reproduzidos até hoje: às mulheres cabia interpretar subjetividade e emoções proibidas aos homens, como tristeza e loucura. Esses trechos são chamados "lamentos": os momentos profundos e trágicos da ópera. "A mulher devia proporcionar o contato com a alma humana. Os lamentos masculinos são cômicos, fazem troça do feminino."

Um olhar um pouco mais atento sobre as narrativas barrocas mostra como a representação da mulher no palco variava conforme o momento e o lugar em que a ópera era composta. Silvana cita Dido, personagem da Eneida, de Virgílio: a primeira rainha de Cartago que, apaixonada, entrega-se ao forasteiro Enea. Quando ele parte em missão, ela se mata.

Ao ser recuperada por Cavalli, a história é contada ao modo veneziano: Dido é retratada como meretriz, pois uma rainha não poderia amar um forasteiro. Porém, óperas italianas deviam ter final feliz. Assim, Dido se redime ao aceitar o amor de um rei, como cabia às mulheres da época. Quarenta anos depois, a saga voltou a ser contada na Inglaterra, por Purcell. Sem final feliz, Dido morre no fim. "Sempre há convenções sociais. A ópera italiana é linda, mas tem esse viés misógino. Já em Purcell, Dido é elevada. A Inglaterra tinha uma simpatia pelas mulheres."

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