Com um pé na Sociologia e outro no Direito, o professor doutor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo uniu duas paixões e se tornou referência quando o assunto é Sociologia do Direito. Presente no 15.° Congresso Brasileiro de Sociologia, que termina hoje em Curitiba, ele é um dos coordenadores de um grupo que analisa um dos assuntos que mais preocupa o paranaense: segurança pública. Os pesquisadores têm cumprido uma maratona: são 36 trabalhos a serem analisados sobre o tema, 12 por dia. A meta é tentar entender como a violência age na sociedade, o papel da Justiça, do Direito Processual Penal, do sistema carcerário e da polícia. Veja os principais trechos da entrevista com Azevedo.
É comum a sociologia se debruçar em estudos sobre os fluxos da Justiça Criminal e seus gargalos. O que os trabalhos trazem de novo em relação a isso?
Os trabalhos têm mostrado uma desconexão dos atores do sistema: Polícia Civil, Ministério Público, Poder Judiciário e sistema de execução penal. A taxa de esclarecimento de crimes é muito baixa. Além de a polícia não receber todos os crimes que acontecem a cifra obscura de crimes é muito alta , daqueles que chegam a ela, mais da metade não é esclarecida. Quando vai para o Ministério Público, falta uma conexão entre o responsável pela investigação e o responsável pela ação penal. Dos inquéritos que chegam ao MP, boa parte é arquivada, porque o MP não consegue, com base naquelas provas, elaborar a denúncia. Feita a denúncia e encaminhada ao Poder Judiciário, há demora na tramitação. Em relação à execução penal, nem se fala: superlotação, desrespeito a direitos. Se pudéssemos definir uma prioridade em relação à segurança pública no Brasil, seria garantir as condições carcerárias.
Por quê?
A falta de condições carcerárias significa que o Estado brasileiro não é ainda uma democracia. Se o Estado não garante as condições prisionais, ele não garante os direitos de uma parcela importante da população brasileira. As prisões hoje não são controladas pelo Estado e acabam sendo uma central de produção de novos criminosos. A pessoa entra porque praticou pequenos delitos e sai vinculada a facções criminais, tendo de praticar novos crimes para pagar o que deve à facção. A polícia brasileira está enxugando gelo. Ao mandar essas pessoas para o sistema carcerário, acaba contribuindo para mais crimes.
Como melhorar a qualidade da nossa polícia?
Não passamos a limpo o período autoritário e isso tem um peso na formação da polícia. É preciso que o Estado assuma os crimes que praticou. Isso de alguma forma cria uma nova cultura democrática, na qual não se admite a prática de abusos. Várias academias abriram os seus currículos para a formação em direitos humanos, mas ainda não se conseguiu colocar isso em prática. Mesmo com um currículo com essas novas temáticas, há também um currículo oculto, que é aquele que os policiais vão colocar em prática. E aí vale a experiência dos antigos policiais, que vão socializar os novos com uma cultura que ainda é autoritária, violenta e pautada por valores que não os de uma sociedade democrática.
Essa dificuldade também decorre de uma sociedade que cobra da polícia essa atuação violenta. É uma sociedade que ainda não entendeu que a redução da violência depende de políticas democráticas de segurança pública e não de ideias como "bandido bom é bandido morto". Quanto mais o Estado é violento e desrespeita direitos, mais a violência é disseminada pela sociedade.
Hoje verifica-se no Brasil uma tendência de aumento do número de presos. Como isso está sendo avaliado?
O Brasil hoje segue o padrão dos Estados Unidos. Esse padrão diz que altas taxas de encarceramento são uma forma da redução da criminalidade. Nos EUA, há uma taxa de 800 presos a cada 100 mil habitantes, a maior do planeta. A média nacional fica em torno de 270 presos por 100 mil habitantes, mas em São Paulo chega a 400. E a tendência é de crescimento. O sistema penal é sobrecarregado com uma demanda à qual ele não tem condições de responder. E isso não necessariamente reduz a criminalidade. Os países que prendem muito são os que apresentam altas taxas de crimes. Essa opção é cara, tem efeitos colaterais fortes e não produz o resultado que se espera.
Por que tanta dificuldade de ampliar as penas alternativas no Brasil?
Ainda há uma certa resistência dos juízes. Há dificuldade de garantir a estrutura necessária para que essas penas sejam aplicadas. A sociedade também tem uma resistência, vê a pena alternativa como impunidade. Mas há trabalhos que mostram que as pessoas, quando são informadas, mudam de opinião.
Outra crítica que se faz é sobre o papel do Direito Penal na redução de violência.
Os trabalhos que temos recebido tratam da dificuldade de produzir resultados em termos de prevenção do crime por meio do sistema penal. O sistema penal não tem como dar conta em uma sociedade em que os crimes acontecem a toda hora. Os lugares que têm conseguido reduzir a violência são os que têm adotado políticas alternativas de prevenção. Essas políticas se voltam para a necessidade de inclusão social da juventude, melhoria do meio ambiente urbano, participação da comunidade. São políticas que exigem uma participação maior dos municípios, que historicamente ficam à margem das políticas de segurança pública.
Os trabalhos mostram algum exemplo de sucesso?
O Observatório de Segurança Pública de Canoas, na região metropolitana de Porto Alegre, criado pelo próprio município com recursos do Pronasci (Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania), coleta dados para acompanhar os níveis de violência e acompanha as políticas de prevenção. Em um ano, houve uma queda de 30% da taxa de homicídios.
Quais as conclusões a respeito da Lei Maria da Penha?
A lei trouxe o tema ao debate público. As pessoas sabem que a violência doméstica contra a mulher tem consequências. Por outro lado, essa ideia de endurecimento penal nem sempre é o caminho mais adequado. Se, por um lado, ele produz um efeito simbólico, por outro impede outras possibilidades, principalmente as ligadas à ideia de uma Justiça restaurativa, de mediação do conflito, de restabelecimento do diálogo, que é o caminho que as próprias vítimas muitas vezes esperam. Embora a lei não tenha previsto, muito juízes têm tentado abrir essa possibilidade, com resultados interessantes. Isso nos faz pensar na possibilidade e na necessidade de uma possível rediscussão da lei.
Qual a sua avaliação sobre os juizados criminais?
Muitas coisas mudaram, mas não necessariamente na direção que se esperava. Acreditava-se que eles poderiam desafogar a Justiça criminal. Com a Lei 9.099/95, foi abolido o inquérito policial para crimes de menor potencial ofensivo e criou-se a figura do termo circunstanciado, um registro mais direto da ocorrência que é encaminhada diretamente ao Judiciário. Ao invés de desafogar as varas criminais, os juizados acabaram recebendo a demanda que antes ficava parada nas delegacias e não chegava ao poder Judiciário. Antes dos juizados havia 5 mil processos por ano em Porto Alegre. Depois, foi para 45 mil. Os juizados deram conta porque o procedimento é muito rápido, mas com isso não se conseguiu fazer o que se esperava: a mediação de conflito. Havia um discurso de fazer o diálogo entre vítima e agressor. Quem conhece o juizado sabe que não acontece isso.