"Oi moço, vamos jantar?", pergunta a educadora Vilma Terezinha da Silva, 52 anos, ao homem alcoolizado, caído num gramado do Capão da Imbuia, em Curitiba. Chove. Ele está em "situação de risco", como dizem os servidores da Fundação da Ação Social, a FAS, quando precisam soar o alerta. Mesmo que o atendido resista em ser levado para a Central de Resgate Social, é preciso gastar até a última gota de saliva. "Ele pode ter uma hipotermia", informa Vilma, oferecendo o braço para levantá-lo. Vinte minutos depois, consegue.
À luz, vê-se que tem boas roupas, usa óculos de grau e que ainda não faz parte de fato dos 2.776 curitibanos que vivem na mendicância, como contabiliza pesquisa do Ministério do Desenvolvimento Social publicada em 2008. O número é motivo de contenda. Para Leonildo José Monteiro Filho, presidente do Movimento Nacional da População de Rua, seriam 5 mil. Para a prefeitura, 3 mil, mas apenas 1,4 mil em estado crônico, sendo que 98% destes já passaram pela assistência alguma vez e estão devidamente cadastrados. "Conhecemos quase todos pelo nome", orgulham-se os funcionários da casa. Quase todos.
"Abrimos três, quatro cadastros novos por dia", calcula a assistente social Neli Maria Schneider Pudelco, 55 anos, uma das gestoras do serviço, apontando o novo perfil da mendicância na capital. Se antes os 250 servidores do abrigo municipal tinham vínculo garantido com a sua clientela, conquistada anos a fio, agora precisam reaprender a lidar com os rostos que surgem, com outros problemas. O homem recolhido no Capão é uma amostra da reviravolta.
Os recém-chegados estão fora do padrão clássico dos pobres em farrapos. Chegam a provocar incredulidade. São mais jovens, bem trajados, têm endereço, mas resistem em dá-lo, indicativo de que podem estar protegendo sua família de algum traficante com ganas de vingança por dívida, como se sabe, paga com sangue. Eis o ponto o crime chegou à linha mais frágil da sociedade e coloca a faca no peito até da ação social.
Crônicos e agudos
Há uma parcela da mendicância que segue o rumo de sempre. São os chamados "crônicos". Para eles, as mudanças são lentas. É comum encontrar nessa fatia quem frequente o albergue da prefeitura há 10, 15 anos ou até mais. Estima-se que 40% dos 300 leitos do ocupados por essa turma, apelidada de "bate e volta". São cordiais abraçam os educadores, têm mesa cativa no refeitório e quarto marcado no segundo andar.
Seus problemas? Casos de álcool, rejeição familiar, conformismo, sofrimento mental. Muitos se julgam velhos demais para recomeçar. "Tenho 35 anos. Durmo aqui desde 1998, mas quem me emprega não sabe. Fui mais discriminado por ser negro do que por ser morador de rua", conta "João", crônico assumido. Aírton Gonçalves, 46 anos, 11 de albergue, montava exposições da Fundação Cultural de Curitiba. Seu vínculo com a arte é flagrante, mas agora a mostra é no Terminal Guadalupe, onde vende alguns desenhos feitos de punho. "Acho que ele está apático", diz uma assistente, diante do que chama de desperdício de talentos.
Quanto aos "agudos", somam 60% dos frequentadores da Central, uma população flutuante, que aporta ali em troca de um banho, roupa limpa e remédio para as feridas. Estão dando um tempo. Satisfeitas as necessidades, podem demorar meses para voltar. É em meio a esse núcleo, digamos, mais dinâmico, que está abrigada uma frente de hóspedes que muda o perfil do morador de rua, botando por terra a pesquisa da FAS feita junto aos usuários, há quatro anos.
Naquela ocasião, havia na clientela do local 7% de não alfabetizados; 14% com ensino médio; 75% com ensino fundamental. A proporção entre usuários de álcool e os de drogas era empatada. Hoje, esses dados parecem ficção científica. Os educadores estão perplexos diante da quantidade cada vez maior de moradores de rua jovens e com maior exposição à escola. São articulados. Com suas jaquetas e aparelhos nos dentes, eles se destacam nas filas tristes de gente deserdada que se forma ali todos os dias, depois das 5 da tarde, à espera de uma vaga para comer, banhar e dormir.
Suas histórias até podem ser tristes feito as do resto, mas têm sabor de faroeste, embaladas por drogas pesadas, como o crack. As variações para o tema são muitas: o "mendigo" que chega agora aos cadastros pode ter dívidas no crime, estar em disfarces, ser usado por traficantes e até ser um expulso das Unidades Paraná Seguro, as UPSs, instaladas em seis bairros da cidade.
"Estou com saudade de encontrar um mendigo romântico, como aqueles do cinema", brinca a educadora carioca Edna Marinho, 42 anos. Ela já cruzou com físicos, engenheiros e um homem que bem poderia ter habitado as cavernas. Apelidou-o de Uga-Uga, talvez para amenizar o impacto de ter de enfrentar alguém que ameaçava o atendimento com um pedaço de ripa. Por ora, contudo, é impossível dizer quantos são esses neófitos no mundo da mendicância, até porque não estão sós. Eles vêm acompanhados de outras comunidades incomuns, como a dos gays, lésbicas e transexuais lançados à sarjeta.
Não é difícil perceber as mudanças que a tribo das drogas trouxe ao cenário. Há quem se preocupe. "Esse lugar se tornou uma bomba prestes a explodir", compara Edson Luiz de Souza, da coordenação do Movimento Nacional da População de Rua. Ele teme por um espaço que hoje abriga não mais centenas de homens e mulheres igualados na pobreza extrema, mas também os espoliados pela violência. É o encontro de dois mundos.
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