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A primeira sensação que tive ao desembarcar na China – além de me espantar com a imponência futurista do aeroporto – foi sentir algo de brasileiro no chinês. Logo esqueci o silêncio e a perfeição japonesas e mergulhei numa espécie de Brasil dos anos 70 (ninguém usa cinto de segurança, fuma-se em toda parte), e percebe-se alguma coisa do nosso jeito: o chinês fala e ri alto, é extrovertido, fura fila, buzina e grita com volúpia, tudo sob uma transparente inocência camponesa. Na rede do metrô, que é humilhantemente moderna, massas de chineses se movem, se empurram e se espremem, todos dedilhando celulares.

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São milhões de chineses saindo do campo para a cidade – e a capital, Pequim, ou Beijing, é uma imensa planície ao lado de um deserto, onde não se encontra mais nada do que seja "autêntico" (tudo é fake), e de onde brotam centenas de prédios moderníssimos, espigões de espelhos, numa ostentatação assustadora de riqueza e, aqui e ali, de acachapante mau gosto. Shopping centers ocidentais se multiplicam, sempre em escala gigantesca e numa impressionante perfeição de granito, escadas rolantes, logotipos internacionais e música ambiente, enquanto do lado de fora lojas de devedês vendem cópias piratas de filmes do mundo inteiro.

Não há casas nem quintais em Beijing, vítimas de uma insaciável terraplenagem imobiliária que vem fazendo a riqueza dos novos ricos e dos velhos corruptos. Caminhar na cidade é uma experiência emocionante – em avenidas imensas, milhares de carros do ano, triciclos elétricos e bicicletas, além de massas de pedestres sem direção, cruzam-se sob buzinas, sinais vermelhos e verdes que nada significam e guardas inúteis apitando nas esquinas. As motos foram proibidas, há rodízio, e só circulam carros de outras cidades sob condições especiais. A ironia é que esse capitalismo selvagem está sendo coordenado, estimulado e desenvolvido pelo mais poderoso Partido Comunista da Terra. Com detalhes surpreendentes de controle: na internet, não há Facebook e o Google não abre. E, por onde quer que se ande, sente-se o sopro atento do Estado policial.

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É difícil decifrar o espírito chinês. O tradutor que me acompanhou à Universidade de Hebei, na cidade vizinha de Baoding, repetiu o mantra: "Não podemos cometer o mesmo erro da União Soviética". Decidiu-se oficialmente que Mao – o dirigente que matou mais chineses na história do país, e cuja Revolução Cultural representou um dos maiores mergulhos na barbárie que ocorreu no século 20 – teria sido 70% bom, 30% mau, um cálculo inexcrutável. "Ele cometeu erros como qualquer ser humano." Debaixo de neve, fui vê-lo na Praça da Paz Celestial. Lá está o corpo preservado de Mao, o rosto plácido e indiferente, exposto num salão imperial à visitação semirreligiosa de uma fila infinita de chineses. A China um dia terá de decidir, enfim, o que fazer com seu legado.