Curitiba Pense uma empresa cheia de filiais espalhadas pelo Brasil, que atua tanto nas grandes metrópoles como nos mais afastados rincões. Agora imagine que essa empresa, uma gigante com milhares de empregados, chega na metade de abril e ainda não tem um planejamento fechado para o ano corrente. Não sabe quanto vai gastar, quais setores priorizar e quanto irá economizar para pagar dívidas antigas. Apesar de inverrossímil para a iniciativa privada, é exatamente essa a realidade do governo federal brasileiro.
"Isso nunca aconteceria no mercado. Os proprietários ou o conselho de acionistas não deixaria a situação chegar nesse ponto. Um atraso muito menor no planejamento já resultaria em demissões e troca de comando", explica o especialista em estratégia de empresas e professor do MBA da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Luciano Salamacha.
Na imberbe democracia brasileira, é improvável que Lula, seus ministros e os parlamentares fossem afastados pelo atraso no orçamento, mas o consenso é geral sobre a dramaticidade da situação. O governo federal chega a metade de abril sem orçamento definido. É um recorde do atraso.
Anteriormente o orçamento só havia sido aprovado com tanta demora em 1994, um ano atípico, devido a implementação do Plano Real. "É como se o governo tivesse tocado o país nos três primeiros meses do ano no escuro, sem uma planilha de custos", diz Salamacha.
Na prática isso só foi possível graças aos chamados restos a pagar, verba prevista para ser usada em 2005, que por um motivo ou outro sobrou no caixa do governo. É devido a esse dinheiro que o governo federal não parou.
A verba, naturalmente, não foi suficiente para garantir o funcionamento de toda máquina pública federal. Na última semana, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva teve de recorrer a um de seus artifícios preferidos, a edição de medidas provisórias (MPs), para evitar que gigantes estatais como a Petrobras e a Eletrobras parassem, suspendendo novos investimentos e sendo obrigadas a pagar multas e juros para fornecedores que, em condições normais, seriam pagos com antecedência. Uma MP foi publicada na quinta-feira passada e a outra sai amanhã em Diário Oficial garantindo R$ 26,2 bilhões para que a máquina continue funcionando.
"É uma clara distorção do sistema político brasileiro. É o capítulo final de uma história absurda", diz o deputado federal Gustavo Fruet (PSDB-PR).
Tragicomédia
A edição das MPs representa o clímax da história de como um governo conseguiu administrar um país por três meses sem saber quanto iria gastar, ou de quanto precisaria para isso.
Para se entender os atuais episódios dessa novela, porém, é necessário voltar a seus capítulos iniciais.
Corroído por denúncias de corrupção, com a base parlamentar enfraquecida e desorganizada pelas denúncias do mensalão, o governo federal enviou um peça orçamentária que conseguiu desagradar aliados e oposição. O orçamento fixava um valor para o salário mínimo, quando todos sabiam que o valor seria outro; tratava como causa menor a restituição aos estados exportadores, quando era notório que os governadores iriam pressionar por um valor significativo.
A peça, capenga, foi enviada então a Comissão Mista de Orçamento, onde a debilidade governista e sanha eleitoral de setores de oposição garantiram corpo a um enredo de tragicomédia.
Quando o relator Carlito Merss (PT-SC) conseguiu fixar o novo mínimo em R$ 350 e analisar os milhares de destaques apresentados em separado pelos membros da comissão, restava ainda equacionar a disputa entre governadores e equipe econômica. Em um mesmo dia de votação, R$1,8 bilhão foi tirado dos estados, repassado aos estados e retirado novamente.
A bizarrice do episódio fez o presidente da Comissão de Orçamento, senador Gilberto Mestrinho (PMDB-AM) ameaçar deixar o cargo. "Estamos prejudicando a sociedade, os estados, os municípios e o próprio governo."
Perto do fim
No final de março, finalmente, a comissão aprovou a peça. Na semana passada, a novela do orçamento parece ter atingido seu ponto alto. Planalto e estados fecharam acordo quanto ao ressarcimento da Lei Kandir, abrindo espaço para a votação em plenário, o que deve acontecer nesta semana. Com a aprovação, o governo terá o dinheiro necessário para inaugurar o que pretende em um ano de eleições e a oposição deverá utilizar o episódio para atacar Lula. A novela pode chegar ao fim, mas bem longe de um final feliz.
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