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Entrevista

"A paz nasce da guerra"

Mais do que antônimos, guerra e paz são situações inerentes e complementares à ordem política mundial. Muitas vezes, a própria construção da paz, por meio de acordos e tratados internacionais, traz em si sementes do conflito que está por vir. Essas relações estão presentes no novo livro organizado pelo doutor em Geografia Humana pela Universidade de São Paulo (USP), Demétrio Magnoli. Com artigos escritos pelo filósofo Roberto Romano, pelo diplomata Celso Lafer e pelo jornalista William Waack, entre outros, História da Paz traça um panorama dos erros e acertos dos Estados na construção de uma ordem internacional pacífica. Por telefone, Magnoli deu esta entrevista à Gazeta do Povo.

História da Paz é uma continuação de História das Guerras?

Não é uma continuação. É uma resposta. Enquanto fazíamos o História das Guerras, alguns autores lembraram que, quando a gente fala de guerras, elas terminam em tratados. Seria interessante fazer um livro contando essa parte da história.

A partir dessas histórias dos tratados de paz é possível fazer uma leitura da própria história humana?

O História da Paz permite uma leitura da história política do sistema internacional de estado. Existe no livro um esqueleto formado pelos tratados cruciais que formaram as grandes ordens internacionais. São eles: o Tratado da Westfália, o Congresso de Viena, o Tratado de Versalhes e, no fim da Segunda Guerra, os tratados de Yalta e Potsdam, de um lado, e Bretton Woods do outro. É um esqueleto para o leitor organizar o que é o sistema internacional. O capítulo inicial discute o lugar da Igreja e do Estado na ordem internacional. Os capítulos que tratam dos tratados coloniais como Nanquim, Berlim e o acordo Sykes-Picot sobre o Oriente Médio dão conta da expansão imperial das potências européias. E, por fim, temos os tratados mais recentes, que mostram como os tratados deixam de ser contratos cujos objetos são apenas os Estados. Um exemplo é a Declaração Universal dos Direitos Humanos, um tratado sobre os direitos dos cidadãos.

A Declaração dos Direitos Humanos não reúne uma série de valores já dispostos na declaração da Revolução Francesa?

A origem é essa. Mas a Declaração da Revolução da Francesa, assim como a Declaração da Independência Americana, são antecedentes. A novidade é que a Declaração dos Direitos Humanos é assinada por todos os Estados. Não é uma proclamação da França ou dos Estados Unidos para o mundo. Esse tratado restringe a soberania dos Estados e essa é uma novidade do século 20. Na ordem internacional clássica, os Estados são soberanos sobre o seus aspectos internos. A Declaração Universal diz que não é bem assim. Eles são soberanos desde que respeitem certos direitos individuais.

O livro mostra que muitos tratados de paz acabam gerando a guerra...

A idéia é mostrar que paz não é o contrário da guerra. A visão vulgar é colocar a guerra num certo universo conceitual e, em um universo paralelo, a paz. A idéia é mostrar que há um permanente fluxo entre guerra e paz dentro de um mesmo universo conceitual. Grandes guerras geram tratados que erguem uma nova ordem. A paz nasce da guerra.

Quando Churchill, Stalin e Roosvelt sentam-se para definir como ficará o mundo ao final da Segunda Guerra começa a Guerra Fria. É um exemplo em que guerra e paz andam juntos?

Exato. E é um período de paz. Não há uma guerra geral, declarada. Temos três grandes períodos de paz desde que os Estados assumiram o papel central na ordem mundial. O primeiro é o Tratado da Westfália, em 1648. Esse tratado basicamente afirmou que os Estados são o atores da ordem internacional e não a Igreja. Ele criou uma ordem pacífica, que durou 50 anos, até as Guerras Napoleônicas. Isso não quer dizer que não houve guerras. Houve e um monte delas. Não houve guerra entre os principais atores do sistema internacional. Depois de Napoleão, no Congresso de Viena, se criam ou se restauram não apenas as dinastias. O que se restaura é uma ordem internacional. Em Viena a palavra restauração foi usada no sentido de se restabelecer uma ordem pacífica. Era como se estivessem fazendo a mesma coisa que fizeram os diplomatas da Westfália. E eles fazem uma ordem pacífica de 100 anos, sem uma grande guerra entre as potências européias. Até a Primeira Guerra Mundial. Era a belle époque, o auge enganoso da Ordem de Viena. Aí temos a Primeira Guerra e depois Versalhes. Em Versalhes, os diplomatas ingleses que vão negociar a paz em Paris são estimulados a estudar o Congresso de Viena. Eles fracassam porque a Paz de Versalhes não produz uma ordem equilibrada. Aí temos a volta. Eu falei que grandes guerras geram uma ordem pacífica. Quando uma nova ordem pacífica não é conseguida pelo meio da arte da política e da diplomacia, isso conduz, nem sempre diretamente, a uma nova guerra. E podemos pegar uma nova abordagem. Os grandes tratados do imperialismo visavam a paz em um certo sentido. Eles visavam organizar pacificamente a expansão imperial. O que foi o acordo Sykes-Picot? Uma forma de Inglaterra e França dividirem pacificamente o Oriente Médio.

O acordo é o pai do conflito palestino-israelense?

E pai de toda geopolítica do petróleo. Só dá para entender o que significa Iraque ao se entender esse tratado. O Iraque foi construído como produto do acordo Sykes-Picot.

Qual seria o tratado de paz a ser firmado nos dias atuais? Um tratado entre o mundo ocidental e o Islã?

Não há uma guerra entre o Ocidente e o Islã. Há uma ideologia que surge com Bernard Lewis (acadêmico britânico especializado na história do Islã), que achamos que surge com o Huntington (Samuel P. Huntington, cientista político norte-americano), mas na verdade só é popularizada pelo Huntington em Choque de Civilizações. Mas não há verdadeiramente, a não ser dentro da ideologia dos neoconservadores americanos, uma guerra entre o Ocidente e o Islã. Acho mais adequado ver a Al-Qaeda e o terror da Al-Qaeda como uma manifestação do interior do Islã. É um conflito entre idéias de modernização e reforma, apoiadas pelo Ocidente, e a idéia de interpretação literal dos textos sagrados. O Ocidente é algo periférico nessa guerra. A importância do Ocidente está no fato de que as potências ocidentais apóiam alguns regimes islâmicos mais liberais.

A Rússia pode complicar esse cenário de paz vivido atualmente?

Não acho. O que a Rússia vem fazendo é reafirmar o seu predomínio sobre uma certa esfera geopolítica que ela considera sua área de segurança. Na verdade o que a Rússia está fazendo é traçar uma linha vermelha no chão e dizer: daqui a Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte) não passa.

Há uma frase do Hobbes (Thommas Hobbes, filósofo inglês) na abertura do seu livro que diz: "Nada exceto a desconfiança mútua une os soberanos". Como você vê essa frase?

O Hobbes criou a imagem de um mundo em que o natural é a guerra. O que ele estava dizendo é que os Estados vivem em estado de guerra porque são soberanos, porque não existe um poder acima deles, um governo mundial que modere a soberania deles. Ele faz é uma comparação entre a ordem nacional e a ordem internacional. Na ordem nacional não há uma guerra de todos contra todos, porque há um poder superior que se chama Estado. Na ordem internacional os indivíduos são os Estados, e como não há nenhum superestado, nenhum governo mundial, eles tendem a estar em choque uns com os outros. Quando não estão fazendo guerras, estão espionando uns aos outros, se preprando para a guerra. Mas na mesma época que o Hobbes diz isso, o Grotius (Hugo Grotius, jurista holandês) apresenta uma outra visão do mundo, onde ele diz que existe uma forma de moderar a tendência à guerra que é a diplomacia, o tratado. E ao dizer isso ele ergue as bases do direito universal. O interessante é que os dois são contemporâneos. Quando a gente fala de Guerra e Paz, falamos de duas visões do mundo. A visão do Hobbes e a visão do Grotius. E o que eu procuro mostrar na introdução é que é um erro imaginar que um ou outro estão certos. A ordem internacional é uma colcha formada pelas idéias de Hobbes e de Grotius. Paz não é o contrário de guerra. Paz e Guerra existem no mesmo fluxo das relações internacionais.

A Onu hoje funciona como um governo mundial que poderia controlar a soberania dos Estados?

A idéia original da ONU está lá atrás em um texto do Kant (Immanuel Kant, filósofo alemão) chamado Paz Perpétua. E o Kant escreveu durante as guerras napoleônicas. Ele vai dizer basicamente o seguinte: a forma de evitar a guerra é a união dos Estados em uma liga da paz. Como em Grotius existe Guerra Justa, que é a guerra contra o Estado que se levanta contra a ordem pacífica. A Liga das Nações surge no final da Primeira Guerra. A Liga das Nações é erguida sobre essa idéia, mas os Estados não são iguais. Existem as potências e existem os outros. Na ONU isso aparece de novo. A ONU foi imaginada pelo Roosevelt como os quatro policiais – Estados Unidos, Inglaterra, China e União Soviética. A ONU nasceu do Conselho de Segurança pra baixo. Qual a diferença entre a ONU e a sugestão do Kant? Aquilo que deveria ser um governo mundial entre iguais torna-se na verdade um diretório de potências.

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