Dizem que sobre religião, futebol e política é bom não falar: sempre há a possibilidade de a conversa desandar e acabar em discussão. E quem vive de falar sobre um desses temas está sempre sujeito a virar alvo de polêmicas intermináveis. É o caso do suíço Hans Küng. O teólogo católico não abre a boca sem causar admiração, espanto ou revolta. Para muitos, ele é um ilustre representante de um caminho que a Igreja poderia ter adotado depois do Concílio Vaticano II, nos anos 1960. Para outros, ele é uma pedra no sapato.
Küng destoa do pensamento de Roma em diversos tópicos. Acha que a participação feminina na Igreja poderia ser maior. Defende a pílula anticoncepcional. Acha que a religião deveria fazer a vida das pessoas "mais fácil, não mais difícil". Nesta semana, a convite da Universidade Federal do Paraná, Hans Küng esteve em Curitiba para falar de ética. Especificamente, da ética envolvida nas relações internacionais. Presidente da Fundação Ética Mundial, falou da política de guerra de George W. Bush e diz que vê um novo caminho para a paz no mundo. A seguir, os principais pontos da entrevista concedida por ele em Curitiba:
O senhor é tido como a principal voz da Igreja hoje. Como vê o caminho da Igreja?
Eu não me vejo de maneira nenhuma como um dissidente porque eu sei que a maior parte dos católicos pensa como eu nas questões polêmicas. Se houvesse um plebiscito em que as pessoas pudessem tomar decisões dentro da Igreja, haveria uma sólida maioria sobre questões polêmicas como por exemplo o controle de natalidade, a pílula, o celibato, a escolha dos bispos em eleições pelo clero e pelo povo.
Este caminho que o senhor aponta pode ser adotado pela Igreja em breve?
Há dois fatores que eu vejo. Os problemas sempre vão se agravar, há sempre mais comunidades sem pastores. Nós teremos logo uma Igreja sem clero. Na questão da moral sexual, os fiéis já tomaram a sua decisão por si mesmos. Esse é um dos fatores. O segundo fator é que a própria mensagem cristã do Novo Testamento está do nosso lado. A liberdade se a pessoa é casada ou não, a questão do celibato está posta claramente no Novo Testamento. Também, por outro lado, Jesus nunca quis colocar um peso sobre as pessoas, mas dar liberdade. A Igreja não deveria tornar a vida das pessoas mais difícil, mas sim mais fácil.
Qual é o novo paradigma das relações internacionais?
O novo paradigma é o contrário do que se fazia na Europa até o final da Segunda Guerra Mundial. Lá, predominava uma política de relações internacionais baseada na confrontação, na revanche, na solução militar dos problemas. Hoje em dia há um novo paradigma baseado no entendimento mútuo dos povos, na integração. Um exemplo claro é que a Alemanha e a França foram durante décadas arquiinimigas. E já com o início da União Européia elas foram capazes de cooperar. Diante desse exemplo, muitos outros países se integraram a essa idéia. E um outro exemplo negativo que nós podíamos dar para ilustrar isso é Bush Júnior. O procedimento dele é um exemplo é um retrocesso ao velho paradigma. Ele faz sofrer as pessoas no Afeganistão, no Iraque, na Palestina, no Líbano, mas também nos EUA.
O senhor fala que é possível trabalhar ciência e fé juntas para o desenvolvimento de uma ética mundial. Como seria isso?
Quando a Igreja aceita os fatos da ciência, leva-os a sério, há uma possibilidade de que ela se aproxime de resultados melhores. Por exemplo, quando se levam em consideração os processos de toda a pesquisa sobre a evolução, isso passa a ter conseqüências também para dentro da Igreja e da religião. Por outro lado, cada cientista razoável também sabe que não é a ciência que dá a última palavra. O próprio Kant, o grande filósofo Immanuel Kant, dizia que a razão pura não é responsável por aqueles assuntos que se dão para além do tempo e dos espaço. A própria Medicina não pode responder o que vem depois da morte. Essas são questões de fé. E as ciências naturais também não podem determinar os parâmetros éticos. A ética é uma questão da Filosofia, da tTeologia, das religiões. Mas a ciência também é importante para que nós saibamos aplicar as regras de maneira correta. Quando a Igreja não se ocupa de questões, por exemplo, como a pílula ou a inseminação artifical, as conquistas da ciência sobre isso, ela se torna então co-responsável pela ignorância diante desses assuntos.
Como lidar com as diferentes posições das religiões em relação à ética?
Nas questões de fé há realmente muitas contradições entre as religiões. Mas nas questões de ética, no estabelecimento de um "ethos", há na verdade muitas concordâncias. E o que o projeto de uma ética mundial tenta é justamente destacar essas coincidências no cabedal ético de cada uma das religiões. Todas as grandes tradições religiosas têm um princípio muito claro que é "não matar pessoas inocentes". Hoje eu li nos jornais que no Rio de Janeiro, por exemplo, há muitas mortes decorrentes de conflitos. A polícia atira, atira-se também das favelas, crianças acabam atirando nas escolas e ocorrem mortes. Também na Europa acontecem episódios como esse cada vez com mais freqüência nas escolas. Antes isso não acontecia. Portanto, parece haver a necessidade de nós relembrarmos esses princípios fundamentais, de que não se deve matar inocentes.
Como o senhor vê o crescimento no seu país, a Suíça, de um partido de ultra-direita que inclusive parece pregar o racismo?
Eu li nos jornais brasileiros e lamento muito que de fato nestas últimas eleições a extrema-direita suíça conquistou assentos no parlamento. A gente tem que entender duas questões. Em primeiro lugar, é preciso ver que a Suíça é um país pequeno e tem a maior presença de estrangeiros no país. Infelizmente alguns direitos à presença dos estrangeiros na Suíça foram mal utilizados por alguns estrangeiros que de fato cometerm crimes. E isso acabou dando a oportunidade para que certos políticos da direita façam esse discurso das "ovelhas negras". Por outro lado, é óbvio que a gente precisa reagir veementemente contra essas posições que se impuseram na Suíça agora. O projeto de ética mundial inclusive ajuda, também no caso da Suíça, a que a gente compreenda melhor o outro.
Hans Küng, Teólogo
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