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Educação

A professorinha ficou na saudade

Lá se vão quase 50 anos desde a época em que a canção "Meus tempos de criança" (1957), de Ataulfo Alves, virou uma espécie de hino oficial do Dia dos Professores. Graças ao artista nascido na pequena Miraí, em Minas Gerais, a palavra "professorinha" ("que saudades da professorinha, que me ensinou o bê-á-bá"), usada na música, passou a traduzir a imagem da cândida mulher que faz do ensino um sacerdócio. Hoje, dá até para se emocionar com os versos derramados de Alves, mas é difícil encontrar num raio de pelo menos 100 mil quilômetros alguém que se identifique com eles.

"Nenhuma profissão mudou tanto ao longo do tempo quanto a do professor", considera Eleonora Fruet, 39 anos, secretária municipal de Educação. Ela fala com conhecimento de causa. Sob sua tutela estão 7.088 professores e 2.800 educadores dos Centros de Educação Infantil (CMEIs) – 98% deles mulheres – e, pelo que tudo indica, capazes de fazer da mestra de Miraí uma pintura da Idade das Cavernas.

Desde meados deste ano, quando o Ministério da Educação publicou os resultados do Prova Brasil – programa de avaliação de desempenho dos estudantes de 4.ª e 8.ª séries do ensino fundamental da rede pública de ensino – os professores da prefeitura de Curitiba estudam o documento em pequenos fóruns. Nesses encontros, as discussões extrapolam os resultados que deram ao município o primeiro lugar em Matemática e o segundo em Língua Portuguesa. Fala-se, principalmente, do entorno da escola, pondo na roda questões como segurança, habitação, demografia e saneamento.

A base de dados disponível é o Censo 2000, entre outras, como o Mapa da Violência 2003, da Polícia Militar do Paraná. Mas não raro algum mestre levanta a voz para questionar a atualidade dos números, desconfiado de que já não correspondem à realidade encontrada na sala de aula. Para quem ainda os condenava ao quadro-negro e ao giz, é uma surpresa percebê-los também como estatísticos, sociólogos, demógrafos e urbanistas em plena forma. A dedução é imediata: além de guardiões do conhecimento universal, do saber adquirido – como se fala –, professores se tornaram fontes de informação privilegiada para as políticas públicas – sejam elas quais forem.

"Ser educador se tornou uma tarefa complexa. Todo tipo de problema bate na porta da escola. Por causa disso, muito raro encontrar um professor que não se tornou um pensador da cidade", entusiasma-se Eleonora Fruet. Ela fala tendo à frente uma calculadora, folha de papel para anotar números em letras graúdas, computador aberto em sites da prefeitura e pasta de relatórios sempre à mão. O arsenal faz jus a sua formação de economista, mas, segundo ela, tem um motivo a mais. Não dá para falar de educação na base da retórica, do elogio e da emoção. "Tudo se tornou superlativo", diz, citando como exemplo o dia em que a Escola Municipal Professora Rejane Sachette, no Bairro Novo, ganhou como vizinho um conjunto habitacional para 800 famílias e teve de dar conta das crianças recém-chegadas. Para quem gosta de ensinar, a velocidade com que as coisas mudam exige habilidades de contorcionista.

Eleonora tem confirmado suas impressões numa espécie de pesquisa de campo não-oficial. Já visitou 158 das 168 escolas do município. "Faltam dez. Mas em algumas eu estive cinco vezes", diverte-se, sobre a maratona iniciada há pouco mais de um ano. Além de aprimorar análises técnicas do ensino na cidade, o exercício confirma que os mestres estão se assumindo como agentes urbanos e, de quebra, tem permitido à secretária colecionar histórias contadas pelos professores. Ao retransmiti-las, abandona as formalidades. Afinal, o mundo visto da porta da escola não cabe numa calculadora.

Dia desses, uma diretora pediu uma Kombi à prefeitura para buscar em casa uma família recém-chegada a uma das vilas do Tatuquara, Zona Sul de Curitiba. Os pais não queriam vínculo com o bairro onde tinham sendo relocados e estavam privando as crianças do ensino. De outra feita, encasquetados com os hábitos de higiene de um aluno, os professores se decidiram por uma visita surpresa à casa dele. Lá descobriram que o cavalo usado pela família na catação da papel dormia dentro da casa, pois os donos tinham medo de que fosse roubada sua fonte de sustento.

Os episódios do arquivo de Eleonora envolvem casos de drogas, agressões e traumas dos alunos que vivem em regiões onde num único fim de semana podem ocorrer até sete assassinatos. A escola, assegura ela, não pode ser hospital, delegacia ou coisa do gênero, mas não tem mais como ser uma mera observadora da vida como ela é. "A divisa entre uma coisa e outra é delicada", define. O "até onde vai" a ação dos educadores, inclusive, permanece sendo um dos ringues mais acalorados do setor.

A pedagoga Yvelise Arco-Verde, 49 anos, superintendente de Políticas Educacionais da Secretaria de Estado da Educação (SEED) e professora licenciada da Universidade Federal do Paraná (UFPR) se alinha entre os que vêem com preocupação a rapidez com que a escola se distancia de sua função básica e é engolida por uma sociedade em pé de guerra. Rejeita, por exemplo, a hipótese de que problemas sociais se transformem em disciplinas escolares, como acontece, e faz sua profissão de fé no conhecimento. "O saber é o melhor enfrentamento que podemos dar o aluno para que lide com a realidade. É com o saber que vai fazer sua leitura do mundo", considera.

Como a realidade vai fatalmente invadir a sala de aula, a educadora entende que o professor do século 21 precisa de diretrizes, um plano de ação que diga até onde se pode ir. Caso contrário, vai se perder em meio ao tiroteio de temas que envolvem conflitos adolescentes, questões ambientais, trânsito, drogadição e violência, entre tantos outros. "Temos de delimitar para que possamos dar conta do mundo. Caso contrário, vamos jogar todas as responsabilidades sobre a escola e frustrar os alunos", alerta.

O mapa do território em que a educação pode pisar, contudo, permanece em aberto. O que nem sempre é um problema. São cada vez mais comuns escolas que alteram diretrizes gerais em função de lidar com dilemas que saltam os olhos, como a pobreza extrema da população. Consenso, mesmo, só o de que essa ponte seja cruzada com "formação continuada" – expressão que botou "processo" e "paradigma" no limbo e é ouvida a três por quatro até no horário do cafezinho. Manter o professor estudando se tornou um desafio tão grande que não vai causar espanto se em pouco tempo for catalogada uma doença chamada "cursite", tamanha a procura por simpósios, palestras e extensões. "O professor é sempre de uma geração diferente do aluno. Se não se atualiza, a escola se torna insuportável para os mais jovens", arremata Yvelise. A professorinha ficou mesmo na saudade.

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