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A República dos Mendigos

MALUCO BELEZA – Ele tem nome aristocrático, usa chapéu de Bacamarte e fez parte da vida na música, parte na rua. Na "República" é conhecido como ABGP | Fotos: Bruno Covello/Gazeta do Povo; Ilustrações: Felipe Lima
MALUCO BELEZA – Ele tem nome aristocrático, usa chapéu de Bacamarte e fez parte da vida na música, parte na rua. Na "República" é conhecido como ABGP (Foto: Fotos: Bruno Covello/Gazeta do Povo; Ilustrações: Felipe Lima)

"Até agora, ninguém ligou no 156 para reclamar", festeja a assistente social Neli Schneider Pudelco, 56 anos, diante da "Casa de Acolhimento Rebouças", na Rua Rockefeller, 1.177, em Curitiba. O local – um "puxadão" amarelo e sem charme – é a nova aposta da Fundação de Ação Social (FAS) no atendimento à população de rua. Funciona ali desde maio. Abriga exatos 100 moradores. Como se sabe, até o momento não atraiu a ira dos vizinhos. E até ganhou um apelido inspirador: "República dos Mendigos".

O nome lhe cai bem. O barracão do Rebouças vai na contramão das práticas tradicionais de albergagem – que alimenta, trata, põe para dormir e depois devolve o "hóspede" às calçadas. Esse local funciona de fato como casa. Cada morador tem sua cama e armário. É conhecido pelo nome e sobrenome. Cumpre tarefas domésticas básicas, incluindo a prevenção do chulé e o combate às cuecas penduradas por todo o canto.

Mais do que isso, quem vive ali participa da administração, dando pitacos, cumprindo pactos. Uma espécie de "conselho de notáveis" – formado por uma dezena de oriundos da mendicância – discute um estatuto de convivência, prestes a ser lavrado. Os redatores chegam a ser espartanos na defesa da ordem. "Eles são rígidos até demais", diz Neli, sobre esses homens que estão a um passo de retomar a vida comum.

Durante um bom tempo, muita gente da FAS duvidou que homens dados ao álcool e às drogas pudessem sentar em roda para discutir qualquer coisa, quanto mais ditar normas para a limpeza do refeitório ou qual a hora de desligar a televisão da sala. Não era o caso de Ângela Mendonça, de Neli e de um grupo de educadoras antenadas, digamos, com as "novas tendências do serviço social". "Temos entre os albergados quem tenha se conhecido ainda adolescente na Casa do Piá. Algo estava errado no nosso atendimento", observa a assistente social Arlete do Nascimento, 54 anos.

Na surdina, as "protestantes" alimentaram o projeto da "república". A oportunidade que faltava veio com a promessa de campanha de Gustavo Fruet, de mudar o modelo de assistência para os oficiais 2.776 maltrapilhos da capital. Restava um problema: o albergue da FAS, da Rua Conselheiro Laurindo, não se prestava a muitas mudanças. Espaço convencional, projetado para atender 300 pessoas em situação de rua, o local sofre de um mal de raiz: "nivela por baixo" todos os albergados. Os que estão trabalhando com carteira assinada, mas ainda não têm onde morar, e os que chegam ali depois de uma maratona diária de álcool e drogas, não se intimidando, inclusive, em distribuí-las nos labirintos da instituição.

O resultado não é difícil de imaginar. Os "crônicos", como são chamados os moradores de rua com dependência química, mas em estágio de transição, acabavam dando marcha à ré ao conviver com os "agudos", termo que dispensa explicações. A única saída era que os crônicos fossem levados para outro lugar. E o lugar é "Casa de Acolhida do Rebouças".

Foi assim que se chegou ao nome dos 100 moradores, protagonistas de uma experiência inédita, até onde se sabe. Os minuciosos cadastros da FAS ajudaram na seleção, mas contou, sobretudo, o testemunho dos educadores que os acompanham, não raro, por mais de uma década. Há, por exemplo, quem use os serviços do albergue desde 1991, como o ex-membro da guarda da presidência da República João Alfredo Maciel Guerra, 56 anos. Gente oriunda da classe média curitibana, como Marlon Júnior Segalla, 39 anos. E recém-triturados pela roldana da pobreza. É o caso de Eliseu dos Santos, 31 anos, já engajado no Movimento Nacional da População de Rua (MNPR).

Esmola não, emprego

O perfil dos inquilinos, diga-se, é tão díspar quanto a realidade dos moradores em situação de rua da capital. O estágio em que estão, igualmente. Pelas contas da assistente social Arlete, 28 dos 100 moradores têm registro em carteira; 40 são informais. Os outros 32 procuram serviço, em geral com impaciência. Os que ali chegam para uma visita não se furtam a responder sempre a mesma pergunta, vinda de algum canto dos dormitórios ou da sala: "Sabe de algum emprego para mim?" Para quem esperava ouvir um pedido de esmola, é uma grande surpresa.

Projeto chama população de rua para escrever regras de convivência:

Confiança

Os moradores da "República dos Mendigos" não passam por revista da Guarda Municipal. O clima de confiança conta a favor. Quando vão à igreja, namorar ou procurar emprego, eles acabam espontaneamente deixando avisos aos 14 educadores da casa. Em vez do anonimato dos grandes albergues, a intimidade de uma moradia. O maior elogio que os assistentes e educadores fazem ao projeto "Rebouças" é que ali podem, finalmente, conversar com o povo da rua, ajudando-os de fato.

Rotina

O expediente da Casa do Rebouças é algo conventual. Não se pode ficar nos quartos a esmo depois das 9 horas. Cada um tem seu dia para usar a lavanderia industrial. A roupa de cama é trocada uma vez por semana. A televisão deve ser desligada, em geral, depois da novela das 21 horas. No sábado vai até o Zorra Total; domingo até o Fantástico.

Lazer

A "república" funciona onde um dia estava instalado o projeto "Criança tem futuro" e conta com uma quadra de esportes. À noite, as "peladas" são frequentes, ainda que os esportes favoritos sejam carteado e os longos serões na frente da televisão.

Recaídas

O combinado é que ali não se pode entrar alcoolizado ou sobre a ação de entorpecentes. Os próprios inquilinos mediam o pacto. Em caso de recaída, os educadores acolhem o morador, mas o chamam para uma conversa no dia seguinte. Há lista de espera para viver ali.

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