MALUCO BELEZA – Ele tem nome aristocrático, usa chapéu de Bacamarte e fez parte da vida na música, parte na rua. Na "República" é conhecido como ABGP| Foto: Fotos: Bruno Covello/Gazeta do Povo; Ilustrações: Felipe Lima

Moradores são asseados e parceiros

Todas as noites, depois do jantar, o fogão industrial da República dos Mendigos fica forrado de pratos feitos. São para os moradores que chegam mais tarde do trabalho. Diante desse gesto de atenção, não restam dúvidas de que o local se pretende uma casa de verdade.

Não é perfeito. Nem poderia. Ali moram apenas homens, e nesse quesito não faz muita diferença a escolaridade e a classe social. Pode-se ver algumas cuecas clandestinas, penduradas nas janelas. E camas desarrumadas.

A exceção fica para a cama 46, do ex-militar Délcio Alves da Silva, 47 anos. É quase uma atração turística, tamanha precisão da dobra dos cobertores. Não é fácil manter a estica – Délcio mora na cama do meio de um triliche, "meio de transporte" mais comum na casa. Dormir ali exige atenção redobrada para não abrir a cabeça.

Mesmo não sendo das mais arrumadas, a cama 20 figura entre as mais originais. Pertence ao roqueiro Carlos Alberto Batista Gonzaga Pereira, o ABGP, 50 anos, layout de Bacamarte. Não é bom em alisar lençóis, mas transformou seu endereço numa biblioteca: forrou o estribo de livros de bolso da série Tex, de Carlos Santander. Nas horas vagas, violão e voz.

Para a turma que conheceu a mendicância, o dormitório é um oásis. O mesmo se diga dos chuveiros, sempre em altíssima rotatividade. "Há quem tome dois banhos por dia", conta a coordenadora da casa, Neli Pudelco. Ao chegar da rua – do trabalho ou da procura de um – cada morador ganha uma toalha limpa. Os banhos espalham o odor forte de sabonete por todos os alojamentos. Os menos asseados estão sujeitos a bullying, contrariando o que se diz sobre o povo da rua.

Tempos de paz

Até o momento, os moradores não se tribalizaram – como acontece em outros albergues. Não há divisões entre mendigos intelectuais, mauricinhos, alcoólicos, "malucos beleza". Tampouco se registraram brigas de socos e pontapés, outro clássico. Os tempos de paz dão êxito ao projeto. Tensão, mesmo, só nos dias em que os republicanos recebem o salário. Alguns temem recaídas e pedem que o dinheiro seja guardado pelas assistentes sociais. Outros somem por alguns dias. Sabe-se o que aconteceu e no que pode ser feito para ajudar. E esse é o grande mérito de uma casa de família.

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Adeus

Até outubro, o albergue da Rua Conselheiro Laurindo, no Centro, será fechado, encerrando um ciclo na ação social da capital. A descentralização de atendimento à população da rua implica na abertura em novas casas de acolhida. Já estão implantadas residências nos bairros Rebouças, Jardim Botânico e Boqueirão. O número de atendimentos nunca pode ultrapassar 100 pessoas. Há a previsão de abertura de novas unidades até 2016.

"Até agora, ninguém ligou no 156 para reclamar", festeja a assistente social Neli Schneider Pudelco, 56 anos, diante da "Casa de Acolhimento Rebouças", na Rua Rockefeller, 1.177, em Curitiba. O local – um "puxadão" amarelo e sem charme – é a nova aposta da Fundação de Ação Social (FAS) no atendimento à população de rua. Funciona ali desde maio. Abriga exatos 100 moradores. Como se sabe, até o momento não atraiu a ira dos vizinhos. E até ganhou um apelido inspirador: "República dos Mendigos".

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INFOGRÁFICO: Conheça a história de alguns dos moradores de rua

VÍDEO: Conheça A República do Mendigos

O nome lhe cai bem. O barracão do Rebouças vai na contramão das práticas tradicionais de albergagem – que alimenta, trata, põe para dormir e depois devolve o "hóspede" às calçadas. Esse local funciona de fato como casa. Cada morador tem sua cama e armário. É conhecido pelo nome e sobrenome. Cumpre tarefas domésticas básicas, incluindo a prevenção do chulé e o combate às cuecas penduradas por todo o canto.

Mais do que isso, quem vive ali participa da administração, dando pitacos, cumprindo pactos. Uma espécie de "conselho de notáveis" – formado por uma dezena de oriundos da mendicância – discute um estatuto de convivência, prestes a ser lavrado. Os redatores chegam a ser espartanos na defesa da ordem. "Eles são rígidos até demais", diz Neli, sobre esses homens que estão a um passo de retomar a vida comum.

Durante um bom tempo, muita gente da FAS duvidou que homens dados ao álcool e às drogas pudessem sentar em roda para discutir qualquer coisa, quanto mais ditar normas para a limpeza do refeitório ou qual a hora de desligar a televisão da sala. Não era o caso de Ângela Mendonça, de Neli e de um grupo de educadoras antenadas, digamos, com as "novas tendências do serviço social". "Temos entre os albergados quem tenha se conhecido ainda adolescente na Casa do Piá. Algo estava errado no nosso atendimento", observa a assistente social Arlete do Nascimento, 54 anos.

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Na surdina, as "protestantes" alimentaram o projeto da "república". A oportunidade que faltava veio com a promessa de campanha de Gustavo Fruet, de mudar o modelo de assistência para os oficiais 2.776 maltrapilhos da capital. Restava um problema: o albergue da FAS, da Rua Conselheiro Laurindo, não se prestava a muitas mudanças. Espaço convencional, projetado para atender 300 pessoas em situação de rua, o local sofre de um mal de raiz: "nivela por baixo" todos os albergados. Os que estão trabalhando com carteira assinada, mas ainda não têm onde morar, e os que chegam ali depois de uma maratona diária de álcool e drogas, não se intimidando, inclusive, em distribuí-las nos labirintos da instituição.

O resultado não é difícil de imaginar. Os "crônicos", como são chamados os moradores de rua com dependência química, mas em estágio de transição, acabavam dando marcha à ré ao conviver com os "agudos", termo que dispensa explicações. A única saída era que os crônicos fossem levados para outro lugar. E o lugar é "Casa de Acolhida do Rebouças".

Foi assim que se chegou ao nome dos 100 moradores, protagonistas de uma experiência inédita, até onde se sabe. Os minuciosos cadastros da FAS ajudaram na seleção, mas contou, sobretudo, o testemunho dos educadores que os acompanham, não raro, por mais de uma década. Há, por exemplo, quem use os serviços do albergue desde 1991, como o ex-membro da guarda da presidência da República João Alfredo Maciel Guerra, 56 anos. Gente oriunda da classe média curitibana, como Marlon Júnior Segalla, 39 anos. E recém-triturados pela roldana da pobreza. É o caso de Eliseu dos Santos, 31 anos, já engajado no Movimento Nacional da População de Rua (MNPR).

Esmola não, emprego

O perfil dos inquilinos, diga-se, é tão díspar quanto a realidade dos moradores em situação de rua da capital. O estágio em que estão, igualmente. Pelas contas da assistente social Arlete, 28 dos 100 moradores têm registro em carteira; 40 são informais. Os outros 32 procuram serviço, em geral com impaciência. Os que ali chegam para uma visita não se furtam a responder sempre a mesma pergunta, vinda de algum canto dos dormitórios ou da sala: "Sabe de algum emprego para mim?" Para quem esperava ouvir um pedido de esmola, é uma grande surpresa.

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Projeto chama população de rua para escrever regras de convivência:

Confiança

Os moradores da "República dos Mendigos" não passam por revista da Guarda Municipal. O clima de confiança conta a favor. Quando vão à igreja, namorar ou procurar emprego, eles acabam espontaneamente deixando avisos aos 14 educadores da casa. Em vez do anonimato dos grandes albergues, a intimidade de uma moradia. O maior elogio que os assistentes e educadores fazem ao projeto "Rebouças" é que ali podem, finalmente, conversar com o povo da rua, ajudando-os de fato.

Rotina

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O expediente da Casa do Rebouças é algo conventual. Não se pode ficar nos quartos a esmo depois das 9 horas. Cada um tem seu dia para usar a lavanderia industrial. A roupa de cama é trocada uma vez por semana. A televisão deve ser desligada, em geral, depois da novela das 21 horas. No sábado vai até o Zorra Total; domingo até o Fantástico.

Lazer

A "república" funciona onde um dia estava instalado o projeto "Criança tem futuro" e conta com uma quadra de esportes. À noite, as "peladas" são frequentes, ainda que os esportes favoritos sejam carteado e os longos serões na frente da televisão.

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Recaídas

O combinado é que ali não se pode entrar alcoolizado ou sobre a ação de entorpecentes. Os próprios inquilinos mediam o pacto. Em caso de recaída, os educadores acolhem o morador, mas o chamam para uma conversa no dia seguinte. Há lista de espera para viver ali.

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