Há três anos, a jornalista curitibana Andréa Deren Destefani foi atingida por uma "onda gigante". Em questão de dias, perdeu a mãe e os dois empregos. Para uma workholic registrada em cartório, aquela era a pior das sentenças: não poderia contar com o consolo do trabalho nos dias de desatino. Foi quando percebeu estar diante das famosas "linhas tortas" do destino. Nascida e criada na Avenida Silva Jardim com a Rua Saint Hilaire, no Batel, um animal urbano confesso, mudou-se com marido e filhos para um sítio em Colombo, alistando-se por antecedência no exército do slow moviment a turma que faz tudo mais devagar. E sem culpa.
O slow é um dos fenômenos mais curiosos da sociedade contemporânea. Não se trata propriamente de um movimento ou de uma ideologia, ainda que muitos o liguem à teoria do ócio criativo, do sociólogo italiano Domenico de Masi. Não tem estatutos nem expoentes, como um Martin Luther King ou um Gandhi. Tampouco geraria uma passeata ou uma greve. Muitos participam sem se dar conta. Fala-se dele em qualquer lugar, mas não há palavras de ordem. Na busca de uma expressão apropriada para defini-lo, pode-se dizer que se trata de um clima uma atmosfera propícia a puxar o freio de mão, blindando-se contra a ditadura da velocidade, uma das mais ferozes formas de autoritarismo desde as fábricas inglesas na Revolução Industrial, os gulags soviéticos e os campos de concentração alemães.
Quem conheceu a Andréa Destefani dos jornais alternativos, das fotografias de exposições, da agenda que ignorava os ponteiros do relógio sempre a mil não conseguia imaginá-la cozinhando num fogão a lenha e obedecendo feito um monge, dia após dia, um ritual caipira para passar o café, seu inseparável companheiro de viagem. Deve ter muita gente que apostou dinheiro na volta da Mulher Maravilha. No início deste ano, inclusive, seu retorno à vida louca parecia certo. De repente, vários jornais e rádios noticiaram o surgimento do primeiro livro-relâmpago sobre a tragédia na Indonésia, ocorrida em dezembro de 2004. "Tsunâmi a Onda Letal", de ninguém menos que Andréa Destefani, lançado pela editora Juruá.
Livros-relâmpagos, como se sabe, são obras que surgem num estalar de dedos, logo depois que um acontecimento extraordinário mexe com a opinião pública. Não costumam ser escritas na rede ou na Praia de Itapoã. Alguns ainda devem se lembrar da biografia que o jornalista gaúcho Eduardo Bueno, o Peninha, escreveu sobre o grupo Mamonas Assassinas, nem bem o trágico acidente que os músicos sofreram, na Serra da Mantiqueira, tinha esfriado dos noticiários. Pois baixou o Peninha na Andréa e tudo indicava que ela tinha trocado o slow pelo fast, mandando Colombo para o álbum de retratos. Alarme falso. A jornalista continua passando seu cafezinho a dois por hora, olhando as plantas e avisando os dois filhos menores, de 4 e 6 anos, para que tomem cuidado com as cobras. Tudo como se fosse um filme francês. E ela recomenda: foi graças à rotina besta de sitiante que conseguiu tirar tantos projetos da gaveta. Afinal, não é um livro são três. Todos escritos ao som do ruído do vento batendo nos galhos das árvores.
No final de 2004, antes do tsunâmi, a jornalista lançou "Terapia do Pensar", uma versão antecipada da filosofia terapêutica, que vem rendendo tanta conversa em 2005. No momento, escreve um romance. "No meu ritmo anterior eu não chegava a finalizar nada que fizesse diferença. Depois do sítio, consegui focar, priorizar, fazer escolhas", diz a ex-frenética. Sim, ela hoje jura de pés juntos que não há nada mais contraproducente do que a velocidade máxima. Diminuir o ritmo, contudo, é uma dor de parto. Andréa lembra uma frase do médico e educador Içami Tiba, que diz mais ou menos assim: "Difícil não é subir na montanha, mas descer." "Todo mundo quer ganhar fôlego, dar uma parada. Mas isso tem um preço: além de viver com menos grana, muda completamente o jeito de fazer as coisas." Incluindo o café. Com três filhos e contas a pagar, precisou não olhar para trás no trajeto entre Curitiba e Colombo. Claro que doeu.
Mas o silêncio de catedral a ajudou a perceber que tudo o que tinha vivido em 38 anos conspirava para que mexesse com a terra, com bichos não para se tornar uma agricultora ou a rainha da festa do leite, mas porque sem esses elementos jamais conseguiria fazer o que mais desejava: estudar e escrever. "O campo aumentou meu poder de concentração", emenda. E também a ensinou a fazer pão, o que ela jamais imaginou botar no currículo de moça nascida no Batel. Veja as voltas que o mundo dá.
Uma dessas voltas, há 15 anos, deu uma rasteira na atriz catarinense Cléo Busatto, 47 anos. Ela trabalhava com teatro infantil em São Paulo e de repente se viu sem lenço, sem documento, em Curitiba, tendo de começar tudo de novo. De preferência sem ser esfolada pelas exigências da produção. Foi quando se iniciou na contação de histórias, atividade pela qual se tornou uma referência no estado. A mudança de ares e de área também a obrigou a apertar a tecla slow. Não dava para colocar um pé na arte de despertar a memória dos ouvintes e outro ladeira abaixo. Teve de se filiar na confraria de Dorival Caymmi e de Martinho da Vila tão devagar, devagarinho, quanto o compositor baiano. Na frente da espevitada Cléo, afinal, sempre tinha gente remexendo baús de lembranças, com poeira e emoções a granel. Ela viu que tinha de respeitar a ampulheta alheia. Não foi fácil mesmo sabendo que artistas, em geral, não lidem com a manhã, a tarde e a noite do mesmo modo que os investidores da Bolsa de Nova Iorque.
"Tem horas que me sinto a formiga atômica. Mas contar histórias exige uma organização interna e pede que a gente esteja muito presente. O contador tem de dar conta de sua própria história. Isso exige tempo e repertório. Indiretamente, a gente está dizendo para o ouvinte que prenda aquele momento para si, para seu prazer. Ele faz um mergulho na memória, recorda coisas que estavam perdidas. Isso mexe. E é uma forma de convidar a parar", declara.
O médico homeopata Cláudio Mello que, segundo consta, já nasceu sem pressa teve experiência semelhante. Mas não numa roda de contação. Preferiu a Avenida Paulista o centro nervoso de São Paulo. Há cerca de cinco anos, em plena hora do rush, o slow à prova de bala ficou andando em passos lentíssimos e mínimos, em uma pequena área, espaço de que precisava para contrastar a velocidade paulistana a uma tranqüilidade em vias de extinção. Foi impossível não captar a mensagem mesmo para quem achou o cara um maluco. "Usei elementos do zen para criticar a civilização atual, que tem a alma movida a petróleo. Acredito que com movimentos lentos pode-se ativar estados de profunda interiorização", comenta.
Foi uma espécie de revolução silenciosa, da qual Melo nunca mais se apartou. Em definitivo, articularia a medicina com as performances. Enquanto nas artes visuais explora a poética do tempo atualmente, na fotografia , na homeopatia aprofunda a idéia de que na enfermidade e no processo curativo existem ciclos que devem ser respeitados, que não precisam nem devem ser acelerados. "Há o tempo próprio de cada indivíduo", resume. É o médico quem receita.
De onde veio?
Saiba mais sobre o movimento dos "quase parando"
* O slow moviment se tornou um dos filões do mercado editorial brasileiro. Confira lançamentos recentes sobre o assunto:
* 1. "Devagar", de Carl Honoré (Ed. Record). Jornalista canadense, de 37 anos, tinha relação neurótica com o tempo. Nesse trabalho, fala de sua "conversão" e propõe a arte de divagar como uma espécie de movimento de reação à velocidade da atualidade. Ele filosofa mas também propõe atitudes banais, no dia-a-dia, capazes de alterar a ordem das coisas.
* 2. "Bom dia, preguiça! A arte e a necessidade de fazer o mínimo possível no trabalho, de Corinne Maier (Ed. Campus). A autora francesa critica, com humor e cinismo, a cultura corporativa e as atividades pouco criativas impostas pelas empresas. E dá receitas para seqüestrar o tempo de volta. Sem perder o emprego.
* 3. "Como não fazer nada", de Tom Hodgkinson (não traduzido). Autor britânico faz elogio à preguiça e põe para correr a ética protestante do esforço e do trabalho sem trégua. O ócio, aqui, mais do que criativo, é um gozo celestial do tipo, "você não sabe o que está perdendo". Para quem duvidar, Tom afirma que a indolência é a virtude de gênios como Descartes.
* 4. "Sobre a alegria da preguiça", de Peter e Micaela Axt (não traduzido). Autores alemães, pai e filha, recorrem à ciência para mostrar que a obsessão pelos esportes físicos e pela boa forma são meio caminho andado para chegar à cova mais cedo. A dupla germânica recomenda horas de sono, sem culpa e com passaporte para a longevidade.
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