"Apesar das marcas que tenho no corpo, às vezes esqueço do que me aconteceu", diz Jéssica Duarte da Rosa, que estava na Boate Kiss, em Santa Maria (RS) naquele 27 de janeiro de 2013, quando o incêndio que matou 242 pessoas começou. Depois de passar um mês no hospital, para se recuperar das queimaduras e da intoxicação, ela veio para Colombo, na Região Metropolitana de Curitiba, morar com os pais e reconstruir a vida. Em um ano, foi necessário disciplina e obstinação. Mesmo com mais cirurgias, sessões diárias de fisioterapia, visitas ao pneumologista e psicólogo, arrumou tempo para fazer um cursinho pré-vestibular. No próximo mês, vai começar a cursar Fisioterapia na Universidade Positivo.
"Meu pai até sugeriu que eu deixasse passar o ano e não fizesse nada, mas nunca pensei nisso", conta. As sessões de fisioterapia diárias além de devolverem parte dos movimentos, inclusive os que fizeram Jéssica voltar a escrever também foram determinantes para a escolha da nova carreira profissional. Na época da tragédia, Jéssica se preparava para entrar no último ano da faculdade de administração, na Universidade Federal de Santa Maria. Ela largou o curso, mas voltará para a cidade em fevereiro, para participar da formatura da turma com quem conviveu por anos.
Iemanjá
A força para recomeçar vem da família e da fé. "Não sei se foi o que me ajudou, mas quando aconteceu [o incêndio], tive muita fé e pedi por minha protetora, Iemanjá", conta. Ao seu lado, estão os pais, Claudio e Regina; e o irmãozinho Guilherme, "seu anjo". "Sou forte por toda a força que eles tiveram para me fazer viver", diz.
A lembrança do namorado, Bruno Portella Fricks, que estava com ela na boate e morreu no hospital, também ajuda a seguir em frente. "Depois soube que ele voltou duas vezes para tentar me buscar. Na terceira, não deixaram ele entrar. Ele praticamente deu a vida por mim", reflete. Em homenagem a Bruno, fez uma nova tatuagem, logo abaixo das borboletas que têm nos pés imagem que representava o casal.
A fisioterapia ainda vai acompanhar a jovem por um bom tempo. No ano passado, Jéssica fez novas cirurgias, para corrigir um problema de encurtamento no braço. No decorrer deste ano, deve fazer operações para reduzir as queloides, marcas do fogo. Todas as cirurgias são feitas no Hospital Cristo Redentor, em Porto Alegre, referência para o tratamento de queimados.
A meta agora é começar bem a faculdade, encontrar um estágio até o fim do ano, ter uma vida melhor e fazer mais amigos. No cursinho, já conheceu mais gente e até frequentou alguns lugares à noite. "Se eu ficar com trauma, o que vou fazer? Ainda sou jovem, tenho que sair e me divertir", diz. A única coisa que Jéssica não quer é que a tragédia seja esquecida, impunemente. "Todas as mortes não podem ser em vão", argumenta.
"A cidade estava em choque", lembra voluntário
Quando ligou a tevê naquela manhã de domingo, um ano atrás, o médico Marcio Luiz Nogarolli viu as primeiras imagens do incêndio na boate Kiss, em Santa Maria. Percebendo a gravidade da situação, o profissional, que atende pelo Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) em Curitiba e é especialista em transporte de pacientes de alto risco, imediatamente se colocou à disposição para ir até o Rio Grande do Sul. Na terça-feira seguinte, embarcou para Santa Maria com uma equipe cedida pela prefeitura de Curitiba.
"A cidade estava em choque. Entrei na UTI quando ainda havia 16 jovens internados. Fiquei desesperado porque me deparei com uma situação muito diferente do que a gente vê todo dia. Você vê pessoas com aspecto doente. Em Santa Maria, vi pessoas jovens, bonitas e sem ferimentos, mas entubadas. Tenho filhos daquela idade, não tem como não se afetar", desabafa.
A equipe de Curitiba ajudou no hospital por quase uma semana. Como os pacientes mais graves já haviam sido transferidos para Porto Alegre, o momento era de prestar auxílio àqueles que ficaram e também compensar o trabalho árduo das equipes de saúde locais, que trabalharam nos dias anteriores.
"Fui para Santa Maria para ajudar e voltei com o coração cheio de vida. Foi a coisa mais bonita que eu fiz como médico, a tarefa que mais me recompensou como profissional", conta.
Os profissionais da Força Nacional do SUS que se dispõem a atuar como voluntários em tragédias foram novamente convocados para auxiliar nas enchentes no Espírito Santo, no início do ano. Todos os médicos estão conectados a uma rede de troca de mensagens e podem ser rapidamente acionados.