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Guerra dos meninos

Abecedário do São Francisco

O Educandário São Francisco tem 5 mil metros quadrados de área construída, divididos em quatro alas – A, B, C e D – cada uma é uma ilha cercada de funcionários por todos os lados e um grande pátio no meio. Como o local funciona 24 horas, a relação é hoje de um educador para dois internos, podendo chegar a um por um, o que contribui para que cada garoto custe para o estado entre R$ 2,5 mil e R$ 5 mil por mês. O mais novo tem 15 anos e os mais velhos passaram dos 18. Alguns podem ficar ali até os 21 anos, desde que não ultrapassem a medida de três anos prescrita pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. Mas são exceções.

De uma das alas, a C, vem o griteiro dos meninos presos, competindo em altura com o som de "Catedral", na versão de Zélia Duncan. A cena é rotineira. "E.", 19 anos, de Campo Mourão; "R.", 17, de Cornélio Procópio, e "A.", 18, de Curitiba estudam violão com o professor de Música Éverson Queluz, 44. A platéia se resume a quatro educadores, mais o coordenador de segurança Rubens Wandembruch, 50 anos, 30 de educandário – tempo que lhe permitiu passear por todas as fases da casa, a repressiva, a assistencialista, a que o Estatuto da Criança e do Adolescente foi implantado e, agora, a pós-rebelião de 2004, quando o setor C foi construído.

A ala C é o lugar mais temido do São Francisco. Abriga 18 garotos que, no linguajar local, "se destacaram". Ou seja, são líderes, remanescentes do levante de dois anos atrás e aqueles cuja estatura possa representar algum risco para A e B. O garoto "E", por exemplo, tem 1,90 metro, um "cavalão", como diz o veterano Rubens, dando a entender que altura, ali, não rende pontos para o time de basquete. As celas que ocupam são menores – 2 x 4 metros – e comportam até dois moradores. Não há televisão e não é permitido fumar, um tormento para o local que ainda tem 70% de fumantes.

Enquanto na C estão os meninos que podem representar algum perigo para a ordem da casa, na D ficam os que correm perigo se saírem no pátio para tomar um ar. O crime que cometeram são aqueles que, nas regras da cadeia, merecem punição. É o caso de estupro ou matricídio. As regras da cadeia – aprendidas pelo garoto ao ter contato com o crime – são um inimigo do corpo técnico do educandário. E um inimigo difícil de dobrar. Começa pelo linguajar, repreendido pelos educadores e técnicos: "jega" (colchão); "atropelo" (risco); "marrocos" (pão); "mancada" (quebra de regras do grupo); "filmando" (testando os educadores); "safado" é uma palavra proibida. E passa pela postura. Em dias de visita de familiares, a lei é não olhar para a família do outro. Ao sair da mesa, tem de bater na mesa três vezes – um pedido de licença aos líderes. Desobedecer é dar a cara a bater – na melhor das hipóteses.

Os técnicos tentam criar situações em que essa conduta seja aniquilada, fazendo com que os adolescentes conversem e até se sentem com visitantes, mas encontram uma resistência bruta. Ao passar os olhos pelas estatísticas que desenham o perfil dos moradores, dá para entender por quê. Os garotos não vieram de pequenos delitos, apenas, mas fizeram estágio em uma sociedade criminosa organizada, fonte, provavelmente, dos únicos confortos que tiveram na vida. Daí a resistência em deixá-la.

Dos 169 internos atualmente, apenas sete vieram de famílias cujos rendimentos são superiores a três salários mínimos (veja info página 6). Ou seja, os meninos são miseráveis. Mais de 68% deles não freqüentavam a escola antes da internação e é raro quem não tenha pelo menos algum tipo de envolvimento com entorpecentes. Cerca de 70% não tinham atividade profissional e 29% já trabalharam alguma vez. A delinqüência veio a galope, e de uma forma muito particular. Contrariando a crença de que esses jovens foram cooptados pelo tráfico – afirmação que os especialistas consideram prematura – o crime em que se envolveram é contra o patrimônio: 67% dos 169 internos do São Francisco estão nessa categoria. Podia não ser razão para estar privado de liberdade, mas os casos costumam ser graves, capitaneados por quadrilhas, incluindo alguma forma de agressão à pessoa, como latrocínio e mesmo homicídio, com 31 casos atualmente. Não são históricos que caibam numa cartilha. É operação de risco - mesmo ao som de "Catedral."

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