A primeira vez que a hanseníase condenou Francisca Barros da Silva à solidão, em 1964, ela ainda era criança. Aos 9 anos, foi levada sozinha ao hospital-colônia de Rio Branco (AC). Apesar da idade, ficou seis meses sem ver a família. Tratada, voltou para casa.
Doze anos depois, já em Curitiba, o fantasma da hanseníase voltou na forma de caroços e manchas pelo corpo. Da completa falta de habilidade do médico em informar o diagnóstico, veio a decisão de se matar, aos 21 anos. "Depois que ele me disse que eu era leprosa e ia morrer caindo aos pedaços, decidi tirar minha vida antes que isso acontecesse."
Com a filha de três meses, jogou-se na frente de um carro. Nenhuma das duas morreu. Ao menos a criança não. Porque Francisca foi obrigada novamente a abrir mão de sua vida. Deixou a filha na casa de uma família que se responsabilizou por criá-la e foi levada à força pela Saúde Pública novamente ao confinamento, desta vez no antigo Hospital São Roque, atual Hospital de Dermatologia Sanitária do Paraná (HDSP), em Piraquara, região metropolitana de Curitiba. Viveu lá de 1976 a 1979.
Voltou em 1997 para uma cirurgia e não saiu mais é uma das 30 pessoas que ainda moram no hospital de Piraquara por decisão própria, opção estimulada por terem perdido contato com a família ou serem alvo de preconceito na sociedade por conta de amputações, membros retorcidos ou feridas causadas pela doença. Preferiu ficar lá e ajudar outras pessoas como ela. Hoje, aos 51 anos, Dide, como é conhecida, é coordenadora no Paraná do Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase (Morhan), que nesse ano conseguiu uma antiga reivindicação: o reconhecimento de que o Estado brasileiro errou ao isolar compulsoriamente os portadores de hanseníase. Todas as pessoas que foram levadas forçosamente aos 33 hospitais-colônia do país para o tratamento da doença entre a década de 20 e 1986 serão indenizadas pelo governo federal com pensão mensal de R$ 750, com recursos do INSS.
É o que determina o decreto 6.188, de julho deste ano, que regulamenta a Medida Provisória 373, promulgada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva em maio. "Essa pensão vai ser um reparo a tantas pessoas como eu, que foram privadas de viver com a família. Mas nada paga as seqüelas emocionais que vivemos", revela Dide.
Para o coordenador nacional do Morhan, Artur Custódio, o benefício é uma conquista histórica. "Desde a década de 40, com a descoberta dos medicamentos contra a hanseníase, o isolamento não era recomendado. Mesmo assim, muitos países, como o Brasil, seguiram essa decisão desumana", afirma.
No caso específico do Brasil, vale recordar que o isolamento compulsório é proibido por lei desde 1962. Mesmo assim, a prática de confinamento por conta do preconceito da sociedade e do próprio poder público, já que a doença tem cura e o paciente quando medicado não representa risco algum de contágio continuou até 1986. "Esse benefício é um reconhecimento à cidadania. Não é o dinheiro que importa, mas sim o pedido de desculpa da sociedade", completa Custódio. Além do Brasil, apenas o Japão concede benefício semelhante desde 2004.
A estimativa da Secretaria Especial de Direitos Humanos (Sedh) órgão da presidência da República responsável por coordenar a comissão interministerial que avaliará quem tem direito ao benefício , é de que de 3 mil a 4 mil pessoas recebam a pensão. Entretanto, o Morhan acredita que possa chegar a 10 mil. "O número da Sedh refere-se somente às pessoas que seguem vivendo nos hospitais-colônias, não inclui as que estão fora", argumenta Custódio.
No Paraná, 418 pessoas já solicitaram ao HDSP comprovante de que foram isoladas compulsoriamente para dar entrada no pedido de pensão 18 delas foram confinadas em 1987, prova de que a prática persistiu depois de 1986. Porém, segundo Dide, a quantidade de requerentes será maior. Prova disso é de que só os beneficiados da pensão estadual aos hanseníacos internados compulsoriamente (ler texto na página ao lado) somam 2,3 mil pessoas.
O pagamento aos exilados sanitários, como são chamados por terem o mesmo status dos exilados políticos, será mediante análise da comissão interministerial de cada caso. A comissão, que conta com representantes do Morhan e que visitará cada um dos hospitais-colônia, foi formada na quinta-feira passada. A expectativa é de que até dezembro as pensões passem a ser pagas.
Para solicitar o benefício, além do comprovante de que foram isolados compulsoriamente, os pacientes terão que enviar à Sedh cópias do RG, CPF e comprovante de residência. "Como a maioria dessas pessoas já é de idosos, a prioridade será das mais velhas", informa Sueli Dias, assessora da Sedh. Os R$ 750 serão destinados a todos exilados sanitários, independente de terem qualquer outro tipo de pensão ou aposentadoria.