As imagens de crianças e idosos yanomamis em estado famélico mancharam a imagem do país e suscitaram fortes críticas ao governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), que teria não só sido omisso no socorro, mas conivente com atividades ilegais que comprometem a sobrevivência dos indígenas. Há mais de um ano, porém, tramitam no Supremo Tribunal Federal (STF) duas ações que buscam impedir o avanço do garimpo sobre esses territórios, o que é apontado hoje como um dos principais fatores de risco para a vida desses povos na Amazônia. Até hoje essas ações não receberam uma decisão liminar, de caráter urgente, para interromper o problema.
As duas ações têm como relator o ministro Kassio Nunes Marques, indicado por Bolsonaro para o STF. Elas foram apresentadas pelos partidos Rede e PV em dezembro de 2021. O objetivo é suspender autorizações, concedidas ao longo dos últimos anos pelo Conselho Nacional de Defesa (CND) e pela Agência Nacional de Mineração (ANM), para pesquisa e extração de ouro no interior ou nas proximidades de terras indígenas no Amazonas, especialmente numa região conhecida como Cabeça do Cachorro, onde habitam mais de 20 etnias.
As autorizações do CND foram concedidas pelo general Augusto Heleno, ex-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), por se situarem na faixa de fronteira. Tratam-se de “atos de assentimento prévio”, um requisito para que posteriormente a ANM analise outras exigências para a concessão de licença para prospecção e eventual retirada do ouro, pelo garimpo ou pela mineração industrial.
Os partidos apontam violações a direitos constitucionais nessas autorizações para o garimpo: ao meio ambiente equilibrado, à vida e saúde dos indígenas e à proteção do patrimônio natural da Amazônia. De forma mais concreta, demonstram, com estudos e dados, os danos causados pelo mercúrio, usado na separação do ouro do minério, que contamina as águas dos rios e os peixes, com efeitos nocivos à saúde de quem os consome, incluindo a população ribeirinha.
Além disso, pesquisas de campo indicam que o garimpo favorece a ocorrência de queimadas e desmatamento, contribuindo assim, também, para a devastação florestal da região amazônica.
No caso do CND, a Rede aponta que as autorizações são concedidas apenas com base na verificação de formalidades, sem considerar a situação dos indígenas e a proteção da floresta. Já em relação à ANM, o partido contesta norma interna que permite a aprovação automática das atividades de mineração caso os requerimentos dos interessados não sejam analisados em determinado prazo pelo próprio órgão.
“Os atos impugnados são nitidamente protocolares, e não levam em consideração comandos constitucionais incontornáveis. Ao que se vê dos atos de assentimentos, em momento algum foram considerados os inevitáveis impactos à população indígena e ao meio ambiente que serão causados pelas atividades de garimpo. Os locais em que foi autorizada a mineração jamais receberam autorizações semelhantes anteriormente, atualmente são áreas praticamente intocadas e lar de grande número de população indígena das mais diversas etnias, inclusive povos considerados em isolamento total", argumenta a ação da Rede.
"Terceiro, os atos permitem a abertura de uma nova fronteira para a mineração e todas as atividades que a acompanham (desmatamento, queimadas, agricultura) em áreas completamente preservadas e com alto número e diversidade de população indígena”, preossegue a legenda
O partido também cita artigo do Instituto Igarapé que, com base em imagens de satélite, mostra um aumento de 20 vezes de mineração ilegal na região habitada por yanomamis. “As constatações são catastróficas, sendo a terra indígena mais cobiçada pelos mineradores.”
A ação do PV, por sua vez, busca derrubar oito atos de assentimento prévio assinados por Augusto Heleno sobre uma área total que ultrapassa 587 mil hectares na Amazônia, quase quatro vezes o tamanho da cidade de São Paulo. Duas das empresas beneficiárias foram punidas pelo Ibama por infrações ambientais. Desde 2019, o general concedeu mais 80 autorizações semelhantes, para pesquisa ou lavra de minérios.
“Caso as autorizações não sejam suspensas de imediato, a exploração dos minérios prosseguirá durante o trâmite desta ação; isso significa a imposição de danos irreparáveis ao meio ambiente, como poluição de águas, solo e desmatamento pela ocupação humana, além de danos imensuráveis à saúde das comunidades que vivem na região (notadamente as indígenas), haja vista a contaminação por mercúrio que advém da atividade garimpeira”, alertou o partido em dezembro de 2021, ao justificar a necessidade de uma liminar imediata para suspender as autorizações.
Ações contra garimpo andam a passos lentos; governo defende licenças perto de yanomamis
Desde que foram protocoladas, as ações receberam apenas despachos formais para discutir a própria tramitação delas na Corte. A primeira, da Rede, logo após ser distribuída por sorteio ao ministro Kassio Nunes Marques, passou mais de dois meses à espera de definição sobre ele ser mesmo o relator . O partido queria que a ação fosse encaminhada para o ministro Luís Roberto Barroso, que já conduzia uma ação anterior, da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), cujo objetivo é forçar o governo a proteger tribos da contaminação pela Covid-19.
Só em fevereiro de 2022, seguindo parecer da área jurídica do STF, o então presidente, Luiz Fux, determinou que a ação seguisse com Kassio Marques, já que tinha objeto distinto. Mas o processo só voltou a ter movimentação em janeiro deste ano, quando a Rede informou ao STF que, em dezembro do ano passado, Augusto Heleno autorizou a busca de ouro numa área de quase 10 mil hectares – o equivalente a cerca de 60 vezes o Parque do Ibirapuera – localizada a menos de 8 quilômetros da terra indígena dos yanomamis, no município de Iracema, em Roraima.
De plantão no STF durante o recesso, a presidente da Corte, Rosa Weber, pediu informações com urgência ao GSI e à ANM. Em resposta, o novo chefe do GSI, general Edson Gonçalves Dias, escolhido pelo presidente Lula (PT), defendeu a competência do órgão para as autorizações na faixa de fronteira e sustentou que elas verificam apenas se os beneficiários não são estrangeiros e se a área não está sobreposta a outra atividade extrativista em curso. Acrescentou que a palavra final sobre a licença é da ANM, cabendo ao GSI apenas a licença prévia na fronteira, faixa de 150 quilômetros para dentro do território brasileiro.
Por outro lado, informou à ministra que seis autorizações que haviam sido concedidas pelo GSI foram canceladas após recebimento de informações da ANM e da Funai – segundo o general, essas autorizações permitiam apenas a pesquisa, não a lavra de ouro. As medidas canceladas abrangiam quatro das oito áreas apontadas pelo PV em sua ação. As demais permanecem autorizadas, assim como a outra área, próxima à terra indígena yanomami, apontada na ação da Rede.
Gonçalves Dias defendeu a manutenção da autorização para essa área específica, perto dos yanomamis, dizendo tratar-se de local “já antropizado”, ou seja, já degradado por ação humana. “A área objeto de pesquisa, e não lavra, como menciona a petição, encontra-se ambientada em local já antropizado, visto que compartilha sua localização com o Projeto de Assentamento Maranhão e o Projeto de Assentamento Japão, ambos sob gestão do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA). Além disso, e também relevante mencionar, tal área de interesse de pesquisa se vê separada da TI Yanomami por outra área antropizada, a saber, o Projeto de Assentamento São José, no município de Iracema, estado de Roraima”, escreveu o general.
A ANM, que tem a palavra final nas licenças, disse que não concede autorizações para pesquisa e lavra de ouro em terras indígenas – embora isso seja possível em locais próximos. O órgão declarou, ainda, que jamais publicaria deliberadamente qualquer ato que pudesse colocar em risco a vida, saúde, liberdade de quem quer que seja ou que causasse dano ao ambiente”. O parecer foi enviado pelo diretor-geral da agência, Mauro Henrique Moreira Sousa, nomeado no ano passado para o cargo pelo ex-presidente Jair Bolsonaro.
No ano passado, instadas por Kassio Marques a se manifestarem na ação do PV, a Advocacia-Geral da União (AGU) e a Procuradoria-Geral da República (PGR) defenderam as autorizações concedidas pelo GSI. A AGU argumentou que as áreas não abrangiam terras indígenas, enquanto a PGR disse que o ato do órgão é prévio e que só a ANM dá a palavra final sobre a licença.
Após essas manifestações, Kassio Marques não despachou mais nos processos. Em fevereiro do ano passado, ele decidiu que a ação do PV seria analisada diretamente no plenário. Até hoje, entretanto, não pediu a Rosa Weber data para julgamento dos pedidos.
Outra ação no STF pede mudanças no controle da extração de ouro
Uma terceira ação que visa impedir o avanço do garimpo sobre terras indígenas na Amazônia chegou ao STF em novembro do ano passado. Foi apresentada pelo PSB e pela Rede e busca derrubar outra norma que, segundo os partidos, facilitam a degradação ambiental dessas regiões. Trata-se do dispositivo inserido pelo Congresso Nacional numa medida provisória de 2013 que desobriga as Distribuidoras de Títulos e Valores Mobiliários (DTVMs), instituições legalmente autorizadas a comprar e vender ouro no país, de controlar a origem do produto.
No momento de adquirir o metal, as DTVMs não precisam verificar o local de extração, pois admite-se a “presunção da boa-fé das informações” prestadas pelos vendedores. A ação diz que muitas instituições têm representantes ligados a garimpeiros. “Assim, ao comprar ouro de si mesmas, na ausência de mecanismos externos de controle e monitoramento efetivos, as DTVMs podem fiar-se no princípio da boa-fé para tornar quaisquer irregularidades existentes na origem do ouro na Amazônia invisíveis para a sociedade”, dizem os partidos.
Essa ação tem como relator o ministro Gilmar Mendes, que já pediu informações à AGU, PGR, Congresso e Presidência para julgá-la diretamente no plenário. Todos os órgãos defenderam a lei vigente, mas o ministro ainda não pediu data para julgamento.
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