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O fotógrafo Paulo Koehler no “Vagão do Armistício”: hoje local é ponto de encontro para interessados na vida de Poty Lazzarotto | Brunno Covello/ Gazeta do Povo
O fotógrafo Paulo Koehler no “Vagão do Armistício”: hoje local é ponto de encontro para interessados na vida de Poty Lazzarotto| Foto: Brunno Covello/ Gazeta do Povo

CARDÁPIO

O que é preciso saber sobre o local que marcou a gastronomia e a cultura de Curitiba na primeira metade do século

1 O NOME

Não se sabe quem batizou a cantina com o nome de "Vagão do Armistício". Sabe-se que na parede havia uma gravura mostrando o vagão de trem onde a Alemanha humilhada assinou sua rendição à França, em 1918. Em 1940, Hitler deu o troco, obrigando a França a fazer o mesmo, num vagão. Dizia-se que o barracão "parecia um vagão". O apelido pode ter sido instantâneo.

2 AS NORMAS

No barracão havia uma mesa só, para não mais de 45 pessoas. Se lotava, Isaac puxava uma mesinha na cozinha, ao lado do fogão de lenha, ou na sala grande. Só não podia chegar de surpresa. O risoto – servido pontualmente às 19 horas – era feito com molho pardo de moelas. Os pedaços assados vinham à parte, mais a polenta e o vinho Pianti. A galinha era criada no quintal.

3 O PADRINHO

Segundo João Lazarotto, entre 1937 e 1946, o interventor Manoel Ribas não passava semana sem aparecer no "Vagão", trazendo a reboque políticos e burocratas do estado. Sua chegada era precedida pela motocicleta do segurança Mário Guerra, trajando preto e quepe, anunciando que o chefe estava chegando ao Capanema.

4 HOJE

O "Vagão" está em pé, no terreno original, atrás do Cartório do Cajuru. Com o apodrecimento das madeiras, foi diminuído e reformado, mas as janelas e portas são originais. Há pinturas do próprio Poty, no teto. O cartorário João Lazzarotto recebe visitas de escolares, pré-agendadas no (41) 3262-3553.

  • Família reunida no
  • Ao centro, o ator Procópio Ferreira, em passagem por Curitiba
  • Armazém de secos e molhados dos Lazzarotto, no Capanema
  • Poty Lazzarotto (em pé, atrás), nos anos 50: amigos reunidos em torno do risoto de Júlia

Pode soar como uma heresia, mas parte da história de Curitiba passa pelo "risoto" – o próprio. O popular prato da culinária italiana, feito com arroz em papas e moela de frango, não só representa a cidade como a projetou país adentro. Rivaliza em importância com a estação-tubo e o calçadão. Às provas.

Na década de 1940, o risoto servido pela dona de casa Júlia Toaldo, nas então lonjuras de Santa Felicidade, deu origem a um dos mais prósperos bairros gastronômicos do Brasil. Tem até estabelecimento listado no Guinness Book. Pois foi na cozinha dos Toaldo que tudo começou. Quem atesta é a empresária Flora Madalosso, autoridade no assunto, em memória de sua precursora no ramo.

Do mesmo modo, o risoto servido por Cenira Gusso, na Sociedade 5 de Julho, no Xaxim, a partir dos idos de 1950, cresceu, multiplicou-se e virou a Risotolândia, uma das maiores empresas do setor de alimentação no país, com 4 mil funcionários e 500 mil refeições diárias, abatendo a fome em massa. Nenhum dos dois pratos era o "risoto da sorte", à moda do "nhoque", mas renderam fortunas, fama e empregos.

Em paralelo aos cases de sucesso de "Santa" e do Xaxim, houve um terceiro risoto vitorioso, preparado por outra Júlia, a Lazzarotto, moradora do Capanema da primeira metade do século passado. Graças ao prato feito por essa descendente de imigrantes – parente de ninguém menos do que Maria Polenta – um guri chamado Napoleón Potyguara Lazzarotto, o Poty, foi revelado.

A história é bem conhecida. Poty jovem desenhava à toa quando foi flagrado pelo interventor Manoel Ribas, que o brindou com uma bolsa de estudos na Escola de Belas Artes do Rio de Janeiro. O resto veio a galope. Mas não se falou o bastante do lugar em que tudo isso aconteceu – o chamado "Vagão do Armistício", apelido da cantina que a família Lazzarotto manteve em Curitiba de 1937 – ano estimado – até 1960. Foram mais de 20 anos de reinado gastronômico e cultural. O local era um barracão de madeira, usado para guardar lenha e abrigar a vaca Chiquita. Na frente, funcionava um armazém. Nada mais curitibano.

Sem luxo

A relativa ignorância em torno do "Vagão" tem explicação. Os espaços de sociabilidade são pouco investigados no Brasil – prefere-se o mundo do trabalho. O pé atrás com os lugares de lazer vigora mesmo no Rio de Janeiro, onde tanta poesia, letra de música e estripulias comportamentais surgiram em bares e boates, e não debaixo do apito da fábrica de tecidos.

Justiça seja feita – o "Vagão" ganhou registros do historiador David Carneiro, do cronista Valério Hoerner, do escritor Valêncio Xavier e, agora, um documentário do cineasta e fotógrafo Paulo Koehler. Já não era sem tempo.

As narrativas sobre o nascimento do local são tão deliciosas quanto, segundo testemunhos, o risoto de dona Júlia. Era praxe nas famílias italianas servir comida em casa e cobrar uns trocos por isso. Não se fazia luxo. Puxava-se a mesa para fora ou em riba do fogão de lenha. Tampouco havia compromisso de servir sempre: tinha dia e hora marcados. Chegou tarde? Pois chupe o dedo.

De acordo com relato do cartorário João Lazzarotto, 82 anos, Júlia começou a servir risotos depois da aposentadoria de seu marido, Isaac Lazzarotto, na Rede Ferroviária, em meados da década de 1930. Isaac trabalhava como guarda-freios, uma espécie de camicase que andava entre um vagão e outro, com o trem em movimento, sujeito a toda sorte de tragédia.

Era figura estimada entre os ferroviários. Logo, não lhe faltaram fregueses no armazém de secos e molhados que abriu logo depois da aposentadoria, junto da casa, à beira do quilômetro 108 da linha do trem, ao sabor da enchentes do Rio Juvevê. Ficava precisamente na Avenida Capanema, 753, hoje Presidente Affonso Camargo.

Isaac vendia "chachichos", bebes, manteiga, oferecia quadra de bocha e conversa fiada para poloneses, italianos e negros da Vila Tassi, berço do samba em Curitiba, plantada do outro lado da rua. Uma das diversões era ver as meninas rumo ao tradicional Colégio Nossa Senhora de Lourdes. Teria sido uma das freiras francesas da congregação de São José de Chambery, inclusive, a abençoada que deu a receita de risoto eternizada pelos Lazzarotto.

Sabe-se pouco sobre o risoto que chegava aos pratos. Seguia a tradição. "Minha mãe colocava o sal na palma da mão, nivelava com a colher de pau, e nunca errava", resume João. Os primeiros fregueses foram homens do Exército, que serviam no quartel da Avenida Silva Jardim. Os demais, artistas e políticos de cepa. Os desenhos de Poty sobre esse cenário mostram os oficiais comendo sob a sombra de um chorão. Havia um quintal cheio de galinhas e de copos de leite lotando os banhados. Nascera para ser simples como isso. Virou uma página da história local. Eis a graça.

Capanema era palco iluminado para artistas

Não se sabe ao certo, mas o que se conta é que o interventor Manoel Ribas soube das virtudes culinárias de Júlia Lazzarotto, da popularidade de seu Isaac e passou a frequentar a cantina apelidada de "Vagão do Armistício".

Era tratado como o príncipe da Dinamarca, mas tinha de seguir as normas da casa – avisava antes, dizendo com quantos confrades políticos ia comparecer. Júlia, conta o filho João Lazzarotto, era rígida com horários e com a quantidade de comida. Ribas gostava tanto do local que, para garantir um canto de mesa, instalou um telefone na casa dos amigos, algo então raro na região. Era o "2872".

A depender da clientela, Joãozinho, como é chamado, começava a matança das galinhas, ajudava na colheita dos radites, não raro tendo de pedir socorro aos vizinhos, que abriam a porta dos galinheiros para ajudar. Recebiam em dobro: poderiam tietar os ricos e famosos que viriam para o jantar.

Além da nata política da época, batiam ponto no local cantores de rádio e artistas de teatro, em visita a Curitiba. A lista é um palco iluminado – passaram pela cantina Vicente Celestino, o Ébrio; Sílvio Caldas, o Caboclinho Querido; as irmãs Linda e Dircinha Batista; a bela Maria Della Costa e seu marido, Sandro Polloni. Inclua-se Hebe Camargo e Cecília Meirelles, sem falar as damas da sociedade curitibana, vestidas como se estivessem no salão azul do Clube Curitibano. Alguns cantores davam palhinha, mas quem mandava no território era o gaiteiro do bairro, Zé Pequeno.

Os ilustres em visita viravam retratos na parede. Todos deixavam a assinatura num livro de ouro – documento desaparecido, para tristeza geral. Tivesse sobrevivido, serviria de crônica com ares de fábula. Parece mentira, tão incrível é. O "Vagão" somava três metros de largura por seis de comprimento. Pequeno e comprido, obrigava inimigos de partido a sentarem de frente uns para os outros, em armistício, muitas vezes à mercê do clique de fotógrafos do temido DIP, departamento do governo Vargas que infernizava a imprensa. Era o Brasil irmanado por um prato de risoto.

Nos anos 1950, o local encontrou seus primeiros concorrentes. Merecem registro o restaurante dançante Boneca do Iguaçu, na divisa com São José dos Pinhais, e as boates, a exemplo da Marrocos, na Praça Zacharias. Aos poucos, os hábitos mais cosmopolitas foram se impondo. Em 1960, o Vagão estava quase esquecido. Uma das últimas celebridades a pisar ali foi Linda Batista, também ela longe do reinado da Era do Rádio. Sua foto ao lado de Isaac, tendo ao fundo a Avenida Capanema, tem um toque de adeus.

Serviço

Lançamento do vídeo Vagão do Armistício, de Paulo Koehler. Hoje, das 11 às 15 horas, no Mercado Municipal de Curitiba (Avenida Sete de Setembro, 1.865).

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