As mortes provocadas por agentes da Polícia Militar (PM) de Londrina em supostos confrontos com suspeitos não vinham sendo investigadas pela Polícia Civil. É isso que aponta a força-tarefa da Polícia Civil que investiga a atuação de um grupo de extermínio formado por policiais militares na cidade. Segundo as investigações, havia um acordo, chamado de “diretriz”, para que os casos registrados como mortes em confronto fossem apurados apenas pela própria PM.
No mês passado, o Ministério Público do Paraná (MP-PR) requisitou informações sobre 19 dessas situações. O promotor Ricardo Domingues determinou a instauração de inquérito para cada uma dessas ocorrências, que agora serão investigadas pela Polícia Civil. O órgão não descarta que outros casos antigos também venham a ser apurados.
“Instauração de inquérito policial é obrigatória”, diz coordenador do Gaeco
Há dois anos, o Grupo de Atuação Especial no Combate ao Crime Organizado (Gaeco), ligado ao Ministério Público (MP), ratificou a obrigatoriedade da instauração de inquérito policial em caso de morte de civis em confronto com policiais. Segundo o coordenador estadual do órgão, procurador Leonir Batisti, a decisão foi referendada no ano passado, em reunião com a Secretaria de Estado da Segurança Pública, Polícia Civil e Polícia Militar.
“Não há objeção quanto à instauração do inquérito policial militar (IPM), mas o que é obrigatório e necessário é que haja a instauração do inquérito policial por parte da Polícia Civil. Se for o caso, o promotor pode e deve instaurar os procedimentos de investigação dele”, disse Batisti.
O coordenador do Gaeco destaca que as investigações devem correr de forma paralela, sem gerar “choques entre as instituições”, e com o objetivo de apurar de forma clara em que circunstâncias ocorreram as mortes em apuração. Na avaliação dele, as provas técnicas devem integrar o inquérito policial.
“A PM, quando acontece o entrevero, já chama o seu oficial, que chega ao local antes do delegado [da Polícia Civil]. Ali, já apreende as armas, que fica com a PM. O que temos insistido é que aquilo que seja prova técnica passe a constituir o inquérito civil”, disse.
Em entrevista à Gazeta do Povo em dezembro de 2015, o comandante-geral da PM, coronel Maurício Tortato, deu versão diferente. Segundo ele, o acordo era de que os policiais militares não se submeteriam as investigações civis, enquanto as mortes em confronto fossem apuradas por meio de IPMs.
Também foi determinado que novos casos de confrontos envolvendo policiais militares sejam investigados pela Delegacia de Homicídios de Londrina. A orientação é do MP-PR, em conjunto com o Grupo de Atuação Especial no Combate ao Crime Organizado (Gaeco).
“As apurações internas da PM, por meio dos inquéritos policiais militares, continuam. Mas estas devem apurar a conduta do militar envolvido no confronto. O crime doloso contra a vida, isso cabe à investigação pela polícia judiciária [Polícia Civil] e tramitação na Justiça comum, não na [Justiça] Militar. É como rege a Constituição”, diz Domingues.
“Diretriz”
A força-tarefa da Polícia Civil vai apontar, em seu relatório final, que havia um acordo verbal entre o Comando da PM de Londrina e a própria Polícia Civil, para que as mortes provocadas por militares fossem apuradas internamente pela Corregedoria da PM. Um grampo telefônico explicita policiais conversando sobre o combinado.
No telefonema, um soldado reclama para o oficial que o delegado pediu para que a arma que estaria com um suspeito, morto em confronto com a PM, fosse apresentada na delegacia, onde ficaria apreendida. O oficial, por sua vez, o orienta a não entregar a pistola. “Não. Tá errado. Ele está desconhecendo a nova diretriz”, diz o policial.
Em outra gravação, um oficial da Polícia Militar (PM) reconhece que a “diretriz” da corporação não tem força de lei. Ele orienta o soldado a apresentar a arma apreendida no suposto confronto à delegacia da Polícia Civil. “Isso não é uma normativa por legislação, Código do Processo Penal. É uma normativa interna. Uma normativa interna não sobrepõe ao CPP”, diz.
O acordo para que as mortes em confronto fossem investigadas internamente pela PM chamou a atenção do delegado Ricardo Casanova, da Delegacia de Homicídios de Londrina. Ele foi transferido à cidade logo depois da semana da chamada “noite do terror”, em que 17 pessoas foram executadas e 17 ficaram feridas.
“Até então, quando havia confronto entre policiais militares e um suposto criminoso era instaurado um IPM [inquérito policial militar]. Isso me causou estranheza, porque a apuração de crime contra vida praticado por militar em serviço é crime comum e não militar. Isso causou certa estranheza”, disse.
Mortes causadas por PMs não eram investigadas, pelo menos, desde dezembro
O Ministério Público do Paraná (MP-PR) não tem informações que permitam afirmar há quanto tempo as mortes ocorridas em confrontos com policiais militares em Londrina não eram investigadas pela Polícia Civil. Mas o promotor Ricardo Domingues aponta que desde que foi designado a Londrina, em dezembro do ano passado, notou que os inquéritos para apurar as supostas trocas de tiros envolvendo policiais não eram instaurados.
“Eu me deparei com essa situação desde que cheguei aqui”, atestou o promotor. As recomendações para que as mortes em confronto passassem a ser investigadas pela Polícia Civil só não foram expedidas na época porque, em seguida, houve a sequência de execuções que ficou conhecida como “noite do terror”, que passou a ser investigada pela força-tarefa da Polícia Civil.
“Tivemos que segurar [as recomendações] para não atrapalhar as investigações da força-tarefa, até porque já havia indícios da participação de policiais militares nas mortes”, apontou Domingues.
O que diz a constituição:
Em seu artigo 124, parágrafo 4º, a Constituição Federal determina que Justiça Militar estadual processará e julgará os militares dos estados apenas nos crimes militares definidos em lei e nas ações judiciais contra atos disciplinares militares. De acordo com o texto constitucional, está “ressalvada a competência do júri quando a vítima for civil, cabendo ao tribunal competente decidir sobre a perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças”. O tribunal competente para julgar crime doloso contra vida é o Tribunal do Júri.
Mais adiante, no artigo 144, parágrafo 4º, o texto constitucional reforça a tese de que morte em confronto também deve ser investigado pela Polícia Civil. O texto lembra que é incumbência da instituição apurar infrações penais, exceto os crimes militares.
O artigo 5º do Código de Processo Penal determina que nos crimes de ação pública o inquérito será iniciado sem a necessidade de nenhum pedido externo. A legislação ainda determina que a autoridade policial, logo que tiver conhecimento da pratica da infração penal, vá ao local e providencie para que não se alterem o estado e a conservação da cena até a chegada dos peritos criminais.
Sesp estuda qual polícia deve apurar morte em confronto com a PM
A Secretaria de Segurança Pública e Administração Penitenciária (Sesp) afirmou que analisa, com as corregedorias das polícias Civil e Militar, qual instituição deve investigar mortes em confronto. Por meio de nota, no entanto, não comentou diretamente o acordo local em Londrina que dispensava a apuração da Delegacia de Homicídios e deixava somente a cargo da Polícia Militar mortes supostamente cometidas por policiais militares.
Sobre a requisição feita pelo promotor de Londrina Ricardo Domingues, a assessoria de imprensa da pasta informou que a Polícia Civil vai atendê-la. “Com relação à Londrina, a Polícia Civil vai cumprir a recomendação do Ministério Público”, mencionou a nota.
A assessoria da Polícia Militar, por sua vez, enviou nota em que diz cumprir a legislação vigente. No texto, a PM ainda ressaltou que todos os inquéritos policiais militares são remetidos à Vara da Auditoria da Justiça Militar Estadual (VAJME) que, “invariavelmente, os remete ao Juiz da Comarca onde os confrontos foram registrados”. Segundo a PM, nos casos de maior repercussão, a própria instituição solicita o acompanhamento do Ministério Público e da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).
“Independentemente de discussões legais e doutrinárias a respeito de competências, inexiste condescendência em relação a eventuais desvios de conduta e a PM continuará a pautar as suas competências de polícia judiciária militar, consoantes aos ditames legais e de respeito às instituições”, diz trecho da nota.
Arma apreendida em confronto com a PM foi usada em execuções anteriores
- Felippe Aníbal
A pistola .380 apreendida com um suspeito que morreu depois de ter entrado em confronto com policiais militares de Londrina, em março deste ano, já havia sido usada em execuções ocorridas em janeiro deste ano. Esses crimes são investigados por uma força-tarefa da Polícia Civil. Foi o grupo que constatou a relação entre o armamento e as mortes.
O homem que morreu na alegada troca de tiros, seria um assaltante. Segundo a versão da PM, o suspeito teria cometido um roubo em um condomínio e fugia em uma carroça puxada por um burro, quando trocou tiros com policiais. Grampos, no entanto, revelam que a própria PM não localizou vítimas do suposto assalto. Para a força-tarefa da Polícia Civil, há indícios de que a arma tenha sido “plantada”, de modo a simular confronto.
Exames balísticos comprovaram que a pistola apreendida foi utilizada em duas execuções, em janeiro. A força-tarefa vê indícios de que os polícias usavam armas clandestinas nos assassinados e, posteriormente, as “plantavam” junto a suspeitos que morriam em supostas trocas de tiros. No total, a força-tarefa investiga 19 ataques, que resultaram em 17 mortes e 17 baleados.
“As armas usadas nas mortes de janeiro começaram a aparecer agora nesses confrontos. Isso precisa ser investigado”, diz o promotor Ricardo Domingues, do Ministério Público do Paraná.
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