O Estatuto do Idoso prevê a possibilidade de uma família abrigar um idoso em caso de abandono e vulnerabilidade, mesmo que não haja nenhum tipo de vínculo familiar. Adotar um idoso, no entanto, ainda não é possível no Brasil. Mas essa situação está perto de mudar: no que depender dos esforços do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos e da Comissão de Defesa dos Direitos da Pessoa Idosa da Câmara dos Deputados.
Apesar de o estatuto prever que “o idoso tem direito a moradia digna, no seio da família natural ou substituta”, a figura legal da adoção de idosos é incomum, seja no Brasil ou em qualquer outro lugar do mundo. A exceção é o Japão, país em que a adoção de adultos é tradicional e comum há séculos.
Em vários sentidos, ela é mais complexa do que a adoção de uma criança, um processo que já demanda uma série de cuidados e checagens. Afinal, a pessoa de mais de 65 anos tem uma vida pregressa, que pode incluir parentes distantes que, mesmo sem contato direto e rotineiro, poderiam questionar a adoção.
O governo federal está interessado em solucionar a questão. Em seminário realizado na Câmara dos Deputados em maio, a ministra Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, defendeu a iniciativa. “A nossa nação está esquecendo os idosos, e o atual governo vai implementar políticas públicas para que nenhuma pessoa seja deixada para trás. A adoção dos idosos pode ser de forma socioafetiva ou de apadrianhamento, mas é certo de que também temos de tirar esse público dos abrigos”.
“Ideia revolucionária”
“A ideia é revolucionária, pode trazer um novo paradigma. Atualmente não é possível adotar um idoso. Não temos ainda estrutura legal para isso”, afirma o advogado especializado em direito de família Rodrigo da Cunha Pereira, presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), que participou de uma audiência pública na Câmara sobre o assunto – convocada pelo deputado Ossesio Silva (Republicanos-PE), em 11 de dezembro, para debater caminhos para regulamentar a medida. O deputado está elaborando um projeto de lei nesse sentido.
Para o advogado, alguns detalhes precisam ser solucionados para garantir que a prática tenha sucesso. Talvez até mesmo seja necessário adotar um outro nome, já que adoção remete à tomada da guarda de crianças. “Como chamaríamos uma mulher de 40 anos que adota uma idosa de 80? Mãe adotiva? Não daria certo. Talvez tutora? Madrinha? Guardiã? Que direitos exatamente ela teria sobre as decisões do idoso?”, questiona.
Eva Bettine, gerontóloga pela Universidade de São Paulo e presidente da Associação Brasileira de Gerontologia (ABG), aponta algumas questões que precisam ser resolvidas pelo projeto de lei em desenvolvimento. “Se o idoso tem posses, estas são adotadas junto com ele? A família que abandonou, caso ele seja adotado, não será penalizada? Se o adotante morrer antes do que o adotado, seus bens passam em parte para o adotado, dividindo com os filhos e descendentes?”, questiona. “E se o adotado tiver posses, quem garante que a adoção não teve essa motivação? Como fiscalizar se a situação de abandono e violência perdurar?”
Políticas de reconhecimento
Cunha Pereira tem perguntas semelhantes. “Por exemplo, quando o idoso tiver patrimônios em seu nome, eles passariam para a guarda do tutor? Precisamos trabalhar em todos esses detalhes”, afirma o advogado.
Além disso, é preciso delimitar as obrigações de quem adota. “A pessoa que adota tem que ter em mente que o adotado poderá estar saudável naquele momento, mas nada garante que o adotante não venha a ter que cuidar do idoso durante muitos anos, admitindo cuidadora, pagando médicos, comprando medicamentos, cuidados intensivos, etc”, afirma Eva Bettine.
Para a gerontóloga, o ideal seria a adoção não envolver questões de dinheiro e patrimônio – ou seja, o acolhimento previsto pelo Estatuto do Idoso. “A ideia desse acolhimento nos parece ser muito mais solidária e desinteressada do que a adoção. Não sou contra a adoção, mas se já temos uma figura no estatuto - uma que pode cumprir esse papel -, não devemos aprimorá-la?”
Em outras palavras: a iniciativa ainda está em passos iniciais. Mas o debate é altamente relevante. “Não será simples implementar essa mudança na legislação, mas é necessário. A adoção pode se tornar uma ferramenta importante para garantir a qualidade de vida dos idosos”.
Trata-se de uma população que aumenta, em termos quantitativos e proporcionais, ano após ano. A população com mais de 65 anos cresceu 26% entre 2012 e 2018, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O total de pessoas nessa faixa etária deverá dobrar até 2042, quando serão 57 milhões de idosos. E, em 2060, segundo uma projeção do instituto, haverá no país mais idosos do que jovens. De acordo com uma pesquisa promovida em 2018 pelo Ministério do Desenvolvimento Social, o número de abandono de idosos aumentou 33% entre os anos de 2012 e 2017.
Ainda assim, no Brasil, os idosos ainda não são levados a sério, afirma Cunha Pereira. “Assim como as crianças, eles são tratados como invisíveis, porque não fazem parte da cadeia produtiva. Precisamos de verdadeiras políticas públicas de reconhecimento e proteção aos idosos”.
Campanha Solidarize-se
Enquanto a legislação não é alterada, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos informou que vem implementando políticas públicas com o intuito de fomentar o acolhimento à pessoa idosa em todo o país. "Nessa perspectiva, foi lançada a Campanha Solidarize-se, com o propósito de mobilizar, conscientizar e esclarecer a sociedade civil sobre o abandono afetivo sofrido por idosos em instituições de longa permanência".
Além disso, informa a pasta, está prevista a criação de um comitê interministerial para discutir e elaborar as diretrizes para a formulação da Política Nacional de Cuidados, "o que contribuirá para a promoção e regulamentação das práticas de cuidado e acolhimento a indivíduos vulneráveis no país, inclusive o idoso".