Ouça este conteúdo
Com quase três décadas de profissão, a advogada Edith Christina Medeiros, de 55 anos, afirma nunca ter acompanhado um processo criminal com tantas ilegalidades. “Não há individualização de conduta ou de pena, estão restringindo nosso direito à defesa, não temos possibilidade de recurso, e ainda fazem busca e apreensão na nossa casa sem termos cometido crime algum”, cita a moradora da Paraíba, que foi detida no acampamento em frente ao Quartel-General do Exército de Brasília dia 9 de janeiro e passou quatro meses encarcerada.
“Infelizmente, a lei não está sendo cumprida e, como ‘pau que bate em Chico também bate em Francisco’, isso deveria preocupar todos os brasileiros, de esquerda e direita”, afirmou a advogada de João Pessoa, ao relatar as arbitrariedades que vivenciou até agora.
A primeira, segundo ela, foi registrada logo nas primeiras horas do dia 9 de janeiro, quando foi convidada a desmontar acampamento com outras 1.926 pessoas — segundo dados do STF — e entrar nos ônibus indicados pelo Exército sob pretexto de “passar por uma triagem e ir para casa”. Segundo ela, esse é um crime de guerra conhecido como perfídia, em que um lado promete agir de boa-fé com a intenção de quebrar a promessa.
“A situação é tão grave, que é algo repudiado por todas as instituições internacionais, pois remete ao Holocausto”, aponta a advogada, ao explicar que “a perfídia foi usada em Auschwitz, onde judeus eram enganados para entrar nas câmaras de gás”.
Por isso, ela relata que os manifestantes acampados em frente ao QG não imaginavam estar sendo ludibriados a entrar nos ônibus. “Acabamos ficamos horas trafegando pelas ruas de Brasília, sem comida, água ou banheiro, até descermos na Academia Nacional de Polícia”, conta a mulher, que havia se alimentado pela última vez por volta das 11h do dia anterior, durante a viagem entre João Pessoa e a capital do país. “Ou seja, estava há mais de 24 horas sem comer”.
Diante da situação e se apresentando às autoridades policiais como advogada, Christina perguntava a respeito da triagem para liberação dos que estavam no acampamento, mas ninguém informava. “Até desliguei meu celular para economizar bateria e chamar um Uber quando fosse liberada”, recorda, ao afirmar que a liberação só ocorreu 117 dias depois. “Não vi mais minha família e quase morri sem meu netinho, que estava com apenas três meses”, lamenta.
“Campo de concentração com quase 2 mil pessoas”
De acordo com a mulher, pessoas começaram a passar mal e a se desesperar com fome, sede e calor dentro do ginásio. “Vi situações de saúde gravíssimas ali dentro, e marmitas só foram servidas por volta das 18 horas, mas com prioridade para idosos e crianças”. Por isso, ela só comeu a metade de um mini panetone doado por um caminhoneiro. “Ele chegou lá por volta das 20h com três ou quatro caixas e distribuiu. Peguei um e dividi com outra pessoa.”
Além disso, sem informações precisas sobre o que estava ocorrendo, Christina conta que solicitou acompanhamento de um representante da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) para a “triagem” e que não aceitou assinar a “declaração de culpa” apresentada pelo delegado. Ela foi obrigada a entregar seu celular e todas as senhas das redes sociais que usava. “Depois, passei a noite inteira em uma sala com algumas cadeiras, e tentei tirar um cochilo no chão.”
Por volta das 9 horas, foi levada com outras presas ao Instituto Médico Legal (IML) para exame de corpo de delito, onde viu uma jovem que a acompanhava desmaiar. “Os funcionários viram nossa situação de fraqueza e ofereceram café, biscoitos e água. Foi um desjejum enviado por Deus após tantas horas sem comer”, recorda a advogada, que seguiu para a Penitenciária Feminina do Distrito Federal, a Colmeia.
“Quando desci, me identifiquei como advogada e pedi novamente a presença de um representante da OAB, que é direito de quem exerce a profissão”, relata. “Mas gritaram comigo e me levaram até uma sala, sem porta, onde tive que tirar toda a roupa com homens passando do lado de fora”, continua, caracterizando a cena como “humilhação”.
Procurada pela Gazeta do Povo, a Secretaria de Estado de Administração Penitenciária do Distrito Federal (Seape-DF) informou que essa revista é realizada na chegada do custodiado ou em qualquer momento que o policial realizar procedimento no interior das carceragens. O objetivo, segundo a secretaria, é “garantir a integridade física do próprio reeducando e do policial, além da manutenção da ordem”, informou em nota, pontuando ainda que “todo procedimento de revista no sistema penitenciário do DF (principalmente na unidade feminina) é realizado em local apropriado com policial feminina respeitando os direitos de matriz constitucional de direitos humanos”.
No entanto, a advogada garante que o local usado para sua revista foi inadequado, tornando a situação “vexatória”. Diante dos fatos, ela relata que solicitou novamente a presença de um membro da OAB, enquanto tentava explicar que a Lei 8.906/94 afirma que advogados não podem ser presos antes de sentença transitada em julgado, “senão em sala de Estado Maior com instalações e comodidades condignas e, na sua falta, em prisão domiciliar”.
“Me falaram que eu iria para a cela gold", relata a advogada
Christina foi alvo de piada. “Me falaram que eu iria para a ‘cela gold’, que descobri mais tarde ser o nome de uma área isolada, fétida, com água gelada saindo por um cano na parede, e com aquele sanitário de chão”, conta a mulher. “Parecia uma masmorra.”
De acordo com ela, foi necessário descer várias rampas para chegar até o local, em um pátio com portão de ferro que tinha o nome citado anteriormente pelas agentes. “E o cheiro de mofo nas celas ali era tão insuportável que eu e a policial penal presa comigo pedimos sabão e vassoura para lavar a cela, e lavamos tudo”, recorda. Além disso, a primeira refeição que recebeu, por volta das 17 horas, “estava azeda e veio com uma banana podre”.
Sem comer novamente, ela ficou até o dia seguinte implorando que a tirassem dali. “Eu pedia a Deus e gritava pedindo aos policiais que chamassem um representante da OAB, mas estávamos muito longe, lá embaixo, e ninguém nos ouvia”, ao afirmar que, “quando vinha alguém, era para nos humilhar e gritar”.
Em nota enviada à Gazeta do Povo, a Seape informou que “nenhuma unidade penal ativa no Distrito Federal faz uso de subsolo como carceragem” e que “a lotação provisória da custodiada em questão foi em local com características isonômicas a todos os custodiados lotados no sistema com prerrogativas semelhantes”. Além disso, a secretaria informou que “os contratos de alimentação das refeições servidas nas unidades prisionais são objeto de extrema diligência por parte dos gestores”.
Christina pontua que “era impossível” comer a alimentação oferecida e que ela permaneceu três dias no local tomando apenas o suco e uma “bolacha salgada mole” que era servida com as marmitas. “No terceiro dia, o jurídico do presídio falou que seríamos transferidas, e nos colocaram atrás do camburão por volta das 22 horas com mãos para trás e cabeça baixa. Cheguei passando mal, com crise de pânico”.
A advogada foi levada ao Núcleo de Custódia da Polícia Militar do Distrito Federal, onde relata que foi atendida pelo SAMU, com pressão alta. “A partir dali, comecei a tomar remédio para pressão, coisa que eu nunca tinha tomado.” Além disso, recebeu medicamentos para hipotireoidismo, e seguiu para uma cela com cama, lençol, sabonete, escova de dente e banheiro limpo com chuveiro quente. “Me ajoelhei e chorei.”
Agora, Christina imaginava que voltaria para casa após a audiência de custódia, realizada em seu 15º dia de prisão. “Mas o Alexandre de Moraes negou”, relata. Ela acredita que foi tratada com mais rigor por ter ajudado na tentativa de criação do partido Aliança pelo Brasil, em 2020.
Liberdade provisória após 4 meses de prisão
Segundo ela, nada a ligava aos atos de vandalismo do dia 8 de janeiro, mas a defesa não conseguia acesso aos documentos do processo para defendê-la. “Jamais me imaginei sendo tratada como criminosa, nem em pesadelo, e sem poder me defender de algo que não fiz”, lamenta. “Aquilo foi tão doloroso que caí em depressão, passei a tomar remédios para dormir e perdi 15 kg”.
Christina só conseguiu liberdade provisória quatro meses depois, em 5 de maio de 2023, e está com tornozeleira eletrônica há 7 meses. “Eu trabalhava como advogada criminal e tinha minhas coisas, mas agora não tenho nem perspectiva de voltar a viver com dignidade”, confessa.
Segundo ela, o dispositivo eletrônico limita seus horários e exige que fique na residência aos finais de semana, prejudicando o exercício do Direito criminal e a proibindo até de ir à igreja. “E ainda fizeram busca e apreensão aqui em casa às 6h da manhã do dia 21 de novembro, e levaram meu celular, que era meu número de trabalho”, lamenta, ao afirmar que foi “assustador acordar com policiais entrando com determinação do ministro Alexandre de Moraes”.
E o pior, segundo ela, é não poder se defender, mesmo sendo advogada. “Infelizmente, esse homem não segue a lei vigente em nosso país”, diz Christina, citando que a saída para acabar com o "pesadelo" seria a anistia. “Afinal, não temos foro privilegiado e, em vez de sermos julgados por um juiz de primeiro grau, todos os casos estão no STF, inviabilizando qualquer recurso”.
No entanto, ela afirma que não desistirá da sua luta pelos valores, pela família e pelo Brasil. “Muitas vezes, sinto vontade de chorar e de 'chutar o pau da barraca', mas olho para os meus netos e lembro que quero apenas o melhor para eles”, finaliza a avó de 55 anos.
VEJA TAMBÉM:
- 102 pessoas ligadas ao 8/1 permanecem presas, segundo o STF
- Presos do 8/1 revelam o que Cleriston enfrentou na prisão: “era desumano”
- Preso pelo 8/1 com comorbidades é levado para hospital após risco de embolia
- Governo Lula pode usar morte de Cleriston para apoiar tese do desencarceramento
- 5 abusos do STF no caso do empresário morto em prisão preventiva pelo 8/1