"É uma pequena joia", resume a arquiteta Aline Soczek Bandil, especializada em restauro de prédios religiosos, ao mostrar as plantas da Capela Nossa Senhora da Glória, na Avenida João Gualberto, 537. Não se trata de um clichê. A "capelinha", como é chamada, foi erguida no final do século 19 e até meados do século 20 ficou debaixo das rédeas de seus herdeiros. Sim, era um templo particular raridade no conjunto da arquitetura sacra. Daí ter sido tratada como uma parte da casa melhor, das mansões das famílias Fontana, Veiga e Leão, nessa ordem, o que garantiu a integridade do imóvel. Poucas igrejas tiveram a mesma sorte.
Aline que tem no currículo outras joias, como as paróquias de São Pedro do Umbará e Bom Jesus do Portão bem sabe. De vigário em vigário, pinturas somem das paredes, escondidas por tintas baratas. Portas de madeira maciça são substituídas por mobiliários vulgares. Santos importados perdem o posto para gessos horrendos. É o diabo. Mas na Capela da Glória não aconteceu. Quase tudo é original. As interferências tresloucadas foram poucas, restritas aos anos 1960, garantia de que o local um ponto turístico informal do Alto da Glória poderia integrar o circuito cultural da cidade.
De 2007 para cá, contudo, o teto desabou, e isso não é um eufemismo. Um anjo de cimento perdeu a cabeça, furou o telhado e o forro, beijando o chão. A chuva veio atrás, repetidas vezes, passando o rodo nas poucas, porém graciosas, decorações dos interiores. O sino foi roubado. A Cúria Metropolitana, que oficialmente, desde 2011, é dona do local, retirou as imagens francesas Santo Agostinho e Santa Efigênia , alfaias, alguns nichos, de modo a evitar os saques. Mas era tarde o esforço de 100 anos escoou pelo ralo. Rápido dedos foram apontados, em busca dos culpados.
Mea culpa
"A Cúria é um cliente difícil", diz um representante da prefeitura que pede para não ser identificado. Ele se refere ao impasse burocrático que atrasou em cinco anos a tomada de posse e o restauro então bem em conta da capelinha.
A arquidiocese, diz, não teria entendido as regras do jogo do patrimônio e as penitências que rondam a venda do potencial construtivo. O recurso legal criado para custear construções históricas virou moeda banal para erguer creches e estádios de futebol, deixando o passado ao sabor do vento. A Mitra agora sabe do que se trata: recebeu o templo em doação, fez um projeto de salvamento, tudo nos conformes, mas entre o orçamento de R$ 690 mil calculado em 2007 e as necessidades que se impuseram depois que as chuvas entraram pelo teto, esse valor quase duplicou. Pede-se novo projeto, novo orçamento, mas dinheiro talvez com milagre.
Para agravar a situação, a capela melhorou seu status, passando a Unidade Especial de Interesse de Preservação (Uiep), um privilégio reservado, por exemplo, à catedral ou à Casa do Estudante Universitário. O título a coloca na ponta da fila da captação de dinheiro para restauro, mas a espera tem sido, com perdão ao trocadilho, "inglória". Com R$ 900 mil em caixa, já conseguidos, a Mitra terá de suar para conseguir, em tese, mais R$ 300 mil necessários às obras. A arquiteta Aline Bandil faz das tripas coração para que os custos baixem. Mas não é o único problema.
O restauro de unidades especiais é três vezes mais rigoroso pode não ficar necessariamente mais caro, mas se torna mais demorado. É preciso arrumar telhas e madeiramentos tal e qual eram. Cada caimento de telhado e detalhe do entorno passa pelo pente-fino. As etapas correm debaixo da lupa de técnicos da prefeitura, o que para a Igreja, com 2 mil anos de tradição no assunto, soa como acinte.
Know-how
A Cúria admite que gostaria que o dinheiro captado fosse liberado por que não? O faltante viria em campanhas junto aos fiéis, que por certo se sensibilizariam ao ver a capelinha aberta. Religiosos têm know-how no assunto. A Secretaria Municipal de Urbanismo, no entanto, diz "não" ao pedido, alegando rigor com a coisa pública. Sem projeto novo e sem orçamento detalhado nem uma esmola sequer será liberada. Houve estresse, é claro. O padre José Aparecido Pinto, ecônomo da arquidiocese, informa que as normas foram acatadas, como a reportagem da Gazeta do Povo pôde conferir. A prefeitura aguarda a papelada em dia.
Na prática, dois estragos foram feitos. Um na arquitetura da capelinha. Outro na opinião pública. Críticas pipocam nas redes sociais. Pelo menos um ganho: a Capela da Glória, descobriu-se, não é nem da Mitra nem das estirpes ervateiras - é da cidade, que a reivindica em bom estado, já.
Templo deve abrigar ponto de cultura
Os ânimos se acalmaram no ringue em que digladiaram a Mitra Arquidiocesana e a Secretaria Municipal de Urbanismo. Obra e graça do padre José Aparecido Pinto, 56 anos. O ecônomo da arquidiocese decidiu dar cabo ao impasse, acatando as regras municipais, ainda que as lamente. Um novo projeto de restauro deve apertar o orçamento em no máximo R$ 1,2 milhão, tirando a Capelinha da Glória da agonia. O religioso, inclusive, tem planos para o local.
José Aparecido é conhecido pela pujança de seu trabalho social. Mora com as idosas no Asilo São Vicente, no Juvevê, e revoluciona a cada tempo o setor de alimentação à frente da ONG Ação Social, no bairro do Rebouças. Para quem o imagina interessado apenas em setores vulneráveis, o interesse pelo patrimônio impressiona. A depender do padre, a Capela da Glória deve se tornar um porto para a cultura religiosa, a exemplo do que acontece em países da Europa.
Novenas e concertos
O aparente comportamento reservado dos bairros elegantes como é o Alto da Glória não o intimida. "Teremos gente em todas as missas", garante, com a experiência de quem atende todas as capelas do Centro Cívico. Não lhe faltam fieis em lugares pouco piedosos como a Assembleia Legislativa, por exemplo. O pequeno templo da João Gualberto, acredita, terá acolhida ainda melhor, podendo servir de sede para novenas e concertos de câmara. Quando será, ainda não se sabe.
Em tempo. Para os que alardearam que todo o equipamento religioso da capelinha tinha sumido, José Aparecido faz o alerta: todo o material está acondicionado nas dependências da Cúria, na Rua Jaime Reis bairro São Francisco.