Em questões polêmicas de bioética, como aborto, eutanásia e pesquisa com embriões, um aspecto importante que deve ser levado em conta é o poder de decisão das pessoas envolvidas, que devem ter o direito de escolher o que querem para si mesmas. Esse princípio, importante na bioética norte-americana, é o tema de "As Raízes Cristãs da Autonomia", fruto da dissertação de mestrado do reverendo Jean Carlos Selleti na Universidade de Brasília, onde ele passou quatro anos orientado por Volnei Garrafa, co-autor da obra. Selleti, que é pastor presbiteriano, professor nos cursos da área da saúde na Faculdade Evangélica do Paraná e coordenador do curso de Teologia na mesma instituição, diz que o livro não pretende ser um guia de bioética para protestantes com respostas fechadas sobre certos temas, e falou à Gazeta do Povo sobre a obra.
Gazeta do Povo O que é autonomia e onde ela se encaixa na bioética?
Ivan Carlos Selleti A própria palavra reflete a idéia de que "eu caminho à luz da minha própria razão", eu tenho o direito de escolher, e esse é um aspecto muito importante na bioética norte-americana, definida como principialista seus quatro princípios são a justiça, a beneficência, a não-maleficência e a autonomia. Ao mesmo tempo, não se trata de algo absoluto: por exemplo, em um contexto de eutanásia em que a pessoa não tem possibilidade de expressar sua vontade, não existe autonomia ali.
Quais são elas?
Na verdade, a pesquisa começa muito antes do surgimento do protestantismo. Iniciamos em Agostinho, principalmente em sua discussão com Pelágio sobre o livre arbítrio. De lá passamos por Tomás de Aquino e pelo nominalismo, uma corrente filosófica importante com Duns Scotus e Guilherme de Ockham. Deles, avanço para a relação com Lutero e Calvino, de quem aproveitamos respectivamente a justificação pela fé e a predestinação. Isso tudo contribuiu para um fortalecimento da pessoa e, quando o protestantismo segue para a América, traz esses ideais que desembocam no princípio da autonomia. Além dos filósofos e teólogos, temos a própria Bíblia. Lá existe um princípio extremamente importante, o do respeito à vida no Evangelho, Jesus diz que veio para que todos tenham vida.
Até que ponto essa prevalência da autonomia é universal?
O mundo da bioética não se orienta apenas pelos princípios norte-americanos. A bioética inglesa, por exemplo, possui aspectos utilitaristas. Para o australiano Peter Singer, há faixas etárias em que as pessoas não têm nenhum valor e podem ser descartadas. Isso é ser utilitarista, porque seu critério é verificar se as pessoas ou situações são úteis ou não. No Brasil, especialmente com o trabalho do professor Garrafa, busca-se uma contextualização. A vulnerabilidade, na bioética brasileira, é um princípio importante, e o vulnerável é aquele destituído de qualquer poder de decisão sobre sua vida. É importante ressaltar que, quando vemos os norte-americanos permitindo tanta coisa e nos perguntamos se eles ainda têm uma moral, a resposta é positiva. Mas lá o princípio da autonomia é muito forte, é sua moralidade. Mesmo que seja para decidir errado, a liberdade de escolher é uma condição importante para o norte-americano.
E o que seria melhor, uma legislação que impeça as pessoas de decidir errado, ou que as deixem seguir sua própria consciência?
Depende muito da moralidade de cada país. Como pastor, por exemplo, sou contrário ao aborto. Hoje as pessoas não deixam de tomar suas decisões, mas na clandestinidade. Talvez em casos como esse, ou da eutanásia, se pudéssemos discutir evitaríamos mortes que ocorrem por causa dessa situação. A consciência de cada um é importante, e devemos lutar para que as pessoas possam escolher com responsabilidade. A Reforma e o Renascimento contribuíram para isso. A partir da Reforma foi possível decidir não apenas sobre fé, mas também tivemos um avanço na liberdade de consciência. Por mais que as pessoas não saibam ser livres, pois nem todas têm prudência, é importante que elas possam decidir sobre seu corpo, seu futuro. Outro aspecto importante é que os códigos não caminharam ao mesmo tempo em que caminhou a biotecnociência. Devemos respeitar as leis, mas elas não podem inviabilizar avanços científicos que nos levem a uma melhor qualidade de vida.
Quais são os temas de bioética mais discutidos hoje dentro da comunidade protestante?
Acredito que os temas da bioética hoje são discutidos na comunidade como um todo e não apenas em um contexto cristão. Existem discussões antigas, como a do aborto, mas também a da terapia gênica, que nos promete evitar problemas genéticos em um futuro próximo, embora esse assunto nos traga dilemas morais sobre a manipulação. O embrião é sagrado e precisamos trabalhar com esse conceito, mas isso não nos impede de dar a ele mais qualidade de vida. O risco que isso traz é o da eugenia. Seria necessário ter normas legais sobre o assunto para que a manipulação não se transforme em uma questão mais estética do que ética. Esse pode ser um dos limites legítimos à autonomia.
Suas idéias têm recebido que receptividade entre lideranças religiosas e a comunidade acadêmica?
Não tenho tido nenhuma dificuldade em falar sobre o tema, mesmo porque a minha proposta não é radical. A recepção é boa tanto entre evangélicos quanto entre católicos tanto que o livro é publicado pela Vozes, uma editora católica. Já desenvolvi temas na UFPR, na PUC, no Instituto Ciência e Fé, e nos cursos da área da saúde aqui na faculdade, onde as idéias também são bem recebidas. Acredito que há uma abertura maior para se falar de pesquisas e dos avanços da biotecnociência no contexto evangélico. Mas o livro não propõe nenhuma distinção entre o modo católico e o protestante de pensar, e sim uma caminhada comum. Claro que temos pontos de vista diferentes sobre alguns assuntos, mas não podemos marcar território em lados opostos. O mundo da biotecnociência nos pede respostas e acredito que podemos fazer isso como parceiros, pois temos o mesmo Deus que nos dá os referenciais.
* Serviço: Lançamento de "As Raízes Cristãs da Autonomia", 20 de outubro, 19 horas. Faculdade Evangélica do Paraná Rua Padre Anchieta, 2.770, Bigorrilho.
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