Temporal destrói casas e sonhos
Conceição Gomes dos Santos Silva, 60 anos, não conseguiu dormir nas duas últimas noites. Não sem motivo. Passava pouco das 20h30 de quinta-feira, a água já atingia um metro na parede da cozinha e todos tentavam tirar o que podiam quando ouviram um estrondo nos fundos da casa. Mal começava o temporal que se abateu sobre Curitiba. A pressão da água derrubou a parte inferior de uma parede inteira de alvenaria, de seis metros de extensão, que ficou suspensa apenas por uma desgastada viga de concreto.
Zaíro Zabel não se acostumaria a fazer as refeições sozinho. Sempre viveu rodeado pela família e não podia deixar que nada estragasse isso. Por isso, até hoje, quando se senta à mesa, do café da manhã ao jantar, o caminhoneiro faz questão de olhar para o rosto de todos os que ama. A diferença é que, agora, só o que permite isso são os porta-retratos. A presença física da família é impossível. No fim do ano passado, durante as enchentes que devastaram o Vale do Itajaí, em Santa Catarina, todos morreram.Nas fotografias, estão os olhares da mãe Laudelina, 63 anos; dos filhos Marques e Marcelo, 13 e 7 anos; da esposa Tione, 36 anos; e da sobrinha Larissa, 4 anos. Os sorrisos são antigos, mas consolam Zaíro, que em 2008 se viu obrigado a construir com as próprias mãos os caixões que receberiam os corpos de seus familiares. As imagens estão na casa nova de Zaíro no Morro do Baú, região rural de Ilhota, em Santa Catarina. Os parentes do caminhoneiro estão entre as vítimas de uma das maiores tragédias provocadas pelo clima no Brasil. Enxurradas e deslizamentos de terra, ocorridos principalmente no dia 23 de novembro de 2008, mataram 135 pessoas no estado e deixaram outras duas desaparecidas.Cerca de 80 mil moradores tiveram de deixar suas casas. Prestes a completar o primeiro ano de suas vidas depois da tragédia, os sobreviventes reconstroem suas vidas. Cerca de 28 mil pessoas ainda vivem em moradias provisórias ou em casas de conhecidos. A previsão de muitos deles é ficar mais um ano nessa situação, enquanto esperam pela casa que será construída pelo poder público. Outros sobreviventes, cansados de esperar, optaram por pegar dinheiro emprestado e investir suas economias num novo lar.No Morro do Baú, região mais afetada pela tragédia, onde morreram 32 pessoas, quem sobreviveu deixou o passado enterrado nos escombros. Seguiu em frente, levando apenas as lembranças boas, dos filhos jogando bola no sábado à tarde, dos netos vindo pela manhã tomar café na casa do avô, da esposa que gostava de chocolate e enfeitava a casa em época de Natal.Daniel Manoel da Silva perdeu quatro netos na enchente (Paulinho, 17 anos; João Pedro, 1 ano e 8 meses; Joana Maria, 7 meses; e Maria Tatiana, 7 meses), além do irmão Nelson, 61 anos. Chovia muito no dia 23 de novembro e os parentes foram todos dormir na casa de Daniel eram 18 pessoas. A casa era nova, de dois andares, e aquela seria a primeira noite que iriam dormir no imóvel. Foi também a última.Um morro deslizou sobre a casa. A tragédia só não foi maior porque o caminhão caçamba foi levado pela barreira e entrou debaixo do segundo andar. Isso segurou o segundo piso, onde a família estava.Na hora de reconstruir a vida, o caminhão recebeu sua recompensa. Foi todo reformado e hoje está praticamente novo. O veículo e partes de tratores estão entre as poucas coisas que Daniel quis resgatar dos escombros. Lá estão até hoje documentos importantes. Daniel vai pouco ao Baú.No meio da reconstrução, a família foi posta à prova: encontrou R$ 20 mil no bolso de um casaco doado. Dinheiro devolvido, Daniel usou as economias e fez empréstimos para comprar a serraria e a casa, no município de Rodeio, distante 45 quilômetros de onde vivia. Anda na corda bamba, com medo de levar calote e correndo contra os prazos, mas mesmo assim quer trabalhar menos e aproveitar mais a vida em família. "A riqueza da gente, que são os netos, não volta mais", diz. O prejuízo financeiro foi calculado, por cima, em R$ 2,2 milhões, contando os tonéis de cachaça do alambique de Daniel, que ficou sob os escombros. Juliano Schwambach, funcionário de uma fábrica de conservas, também perdeu sua casa. Revirou os entulhos e não encontrou o que procurava. O corpo da filha Larissa, que tinha 11 meses, não foi localizado. Juliano perdeu a filha e a esposa Marinéia, 23 anos, depois que uma barreira atingiu a casa. O corpo da mulher foi encontrado 12 dias após a tragédia. Juliano já foi várias vezes procurar o corpo de Larissa. Numa das tentativas foi com uma benzedeira. Procuraram em três lugares. Ela disse que a esposa estava abraçada com a filha antes do deslizamento. Não foi bem assim.Quando aconteceu o deslizamento, ele pegou a menina nos braços. Segurou-a mais para cima, com medo que ela engolisse água. Veio uma enxurrada e levou a menina de seus braços. Junto com a benzedeira foi-se embora um mês de salário de Juliano, para pagar a máquina escavadeira.Juliano pegou pouca coisa dos escombros. Quando ia até o Morro do Baú encontrava peças de roupa, lavava-as e deixava-as no mesmo local. Trouxe um pouco do cabelo da esposa, fez uma trança e colocou ao lado da foto da filha e de um rosário, na parede do quarto. "Se tivesse sobrado alguém, teria um começo", desabafa Juliano. Sozinho, não precisa mais dos 110 metros quadrados que tinha na casa antiga. Os atuais 36 metros quadrados, numa casa de madeira num bairro de Ilhota, já são suficientes. A construção foi doada pelo Lions Clube. Outras 12 famílias receberam as casas. Mas Juliano quer ampliar a casa nova e planeja o futuro. Está namorando.
José Altino Richartz, 60 anos, também está com nova companheira e vai com ela dançar à tarde para se distrair. Por causa da tragédia, ele perdeu a filha Giane, 27 anos, e a esposa Augusta, 59 anos. A mulher morreu assim que caiu uma barreira sobre a casa deles. Altino acordou para ver o nível do rio e conseguiu escapar. Preso nos destroços, ouvia a voz da filha Giane: "Pai, a mãe se foi, mas eu vou cuidar do pai".
Altino foi até a filha, mas não conseguiu tirá-la dos destroços. Passou a noite com uma vela acesa ao lado de Giane, sabendo do risco que estava correndo. "Podia cair outra barreira, mas não podia deixá-la sozinha". A noite foi difícil, passando muito frio. Quando a filha pedia água, ele torcia o pijama para ela chupar. Giane não resistiu enquanto esperava pelo socorro. Por mais que tentasse, ela não conseguiu cumprir sua promessa. Seu pai ficou sozinho.Quem perdeu familiares na enchente se consola pensando que eles estão bem, e que até ajudam quem ficou por aqui. Zaíro Zabel acredita que os parentes que morreram olham por ele do céu. "Entrego na mão deles." Mas começou tudo de novo sem levar nada da casa antiga, para não ter lembranças tristes. O caminhoneiro está namorando e mora em uma casa alugada, que fica no Morro do Baú, em uma área que não foi tão severamente atingida por deslizamentos do ano passado.
Da tragédia sobreviveram apenas a irmã de Zaíro e o cunhado. O caminhoneiro não foi atingido porque estava trabalhando: tinha ido buscar madeira no Paraná e ficou preso no engarrafamento da rodovia. Quando conseguiu chegar ao Morro do Baú, a pé, encontrou o corpo do filho mais velho coberto por um lençol branco em cima de uma mesa de madeira, na igreja.
Os outros corpos demoraram a ser encontrados. Zaíro ia todo dia procurar os familiares e aguardava-os com caixões de madeira que ele mesmo construiu. Revirava pedaços de madeira, de tijolo, móveis, tudo que antes era sua casa.
Passou o Natal sem ter encontrado o corpo da esposa e do filho mais novo. Foi até os destroços, acendeu uma vela no que era um freezer e colocou um vaso de flores. Ajoelhou-se. Chorou, no dia mais triste de sua vida. Foi procurar os corpos no dia 26 de dezembro, com umas 15 pessoas. Um deles viu um corpo. O outro estava próximo. "Parece que saiu um peso das costas e comecei a viver de novo." Naquele instante, Zaíro sentiu que era hora de seguir adiante, mas com os parentes sempre por perto. A seu lado, na mesa de jantar.
135 mortes e prejuízo estimado de R$ 3 bi
O saldo dos estragos da chuva em Santa Catarina, em novembro de 2008, foi de 135 mortes, duas pessoas desaparecidas, 77 municípios atingidos e um prejuízo estimado em R$ 3 bilhões. Segundo o diretor estadual de Defesa Civil, Márcio Luiz Alves, a maior preocupação é com as 28 mil pessoas que continuam desabrigadas e desalojadas, no Vale do Itajaí.
A construção da maioria das casas ainda está na fase de compra de terreno. Dos R$ 36,3 milhões recebidos por doação, R$ 18 milhões foram gastos na compra dos imóveis. A demora seria culpa da burocracia, segundo Alves. Também a ocorrência de novos eventos adversos, em várias regiões do estado, atrasou a reconstrução. "Não conseguimos avançar. Estávamos atendendo um desastre e acontecendo outro", afirma Alves.
Na última quinta-feira, por exemplo, um vendaval provocou a morte de uma pessoa no município de Tubarão. Vendavais de até 107 km/h e temporais atingiram o litoral Sul, o Meio-Oeste e a região da Grande Florianópolis.
Reconstrução
O diretor explica que é difícil fazer um balanço do que já foi reconstruído desde 2008 e do que ainda falta melhorar. "Todo desastre deixa um passivo e o passivo sempre é muito grande."
A origem da tragédia está em dois fatores, de acordo com a Defesa Civil. O primeiro deles é o clima. Em dois dias, choveu 600 milímetros, o esperado para seis meses. A segunda questão é a ação humana, com os desmatamentos.
A ação da natureza e a intervenção do homem podem voltar a causar novos desastres no estado, de acordo com o diretor. Para Alves, a prevenção passa pela conscientização da população. A solução não será, na opinião dele, retirar as famílias que moram em área de risco. "Tem muita gente falando que temos de tirar famílias das áreas de risco. É a definição mais simplista. Mais de 30% da população brasileira vive em área de risco. Como vamos tirar?"
O estado está adquirindo um radar e comprou novos pluviômetros e estações meteorológicas. A aposta é que a população aprenda a agir preventivamente, para evitar a perda de novas vidas. "Admito que em alguns momentos me senti impotente, incapaz, me sinto triste. Sou pago para proteger meu povo e morreram 135 pessoas. Eu fui incompetente, não fui capaz", emociona-se o diretor.
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