Apesar de a última terça-feira (2) ter sido pautada por intensos debates na Câmara dos Deputados sobre o chamado “PL das Fake News (PL 2630)”, que estava previsto para ser votado naquele dia, a data ficou marcada pela interferência de atores de outros poderes, diretamente interessados na aprovação do projeto de lei, que usaram do poder do Estado para tentar evitar a derrota da proposta, caso fosse a Plenário.
As tentativas por parte do governo federal de interferir no debate que ocorria no Legislativo se deram em especial pelo ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, que convocou uma coletiva de imprensa durante o dia para anunciar uma série de medidas contra o Google. A empresa de tecnologia mantinha desde o início do dia uma notificação em seu site com link para um texto com o título “Como o PL 2630 pode piorar a sua internet”. Além de ordenar a exclusão do informe, o ministro de Lula (PT) exigiu que a empresa publicasse uma contrapropaganda com mensagens favoráveis ao PL das Fake News sob pena de multa de R$ 1 milhão por hora de descumprimento.
No afã de justificar um suposto cerceamento de conteúdos favoráveis ao projeto de lei por parte das plataformas de comunicação, o ministro chegou a divulgar uma fake news que, mais tarde, foi classificada como “ridícula” pelo empresário Elon Musk, dono do Twitter.
Em paralelo à ação de Dino, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes – outro contundente defensor da regulação das redes sociais por meio do projeto de lei em questão – também agiu rápido contra as big techs e ordenou a remoção imediata de todos os anúncios que se posicionavam contrários ao PL das Fake News. Além disso, determinou que os diretores das empresas Google, Meta (proprietária do Facebook, Instagram e WhatsApp), Spotify e Brasil Paralelo fossem ouvidos pela Polícia Federal por possível abuso de poder econômico e suposta contribuição com a desinformação.
Em comum entre as ofensivas de Moraes e Dino contra as big techs está o embasamento em um relatório produzido pelo Netlab, um laboratório de pesquisa dedicado ao ativismo político de esquerda que funciona com recursos públicos dentro da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). O grupo de ativistas é abertamente favorável ao PL das Fake News e, inclusive, já enviou sugestões para serem acrescentadas na proposta, o que, em tese, comprometeria sua isenção para criar um relatório técnico de embasamento à Justiça e ao governo.
Mesmo assim, foi esse parecer que fundamentou as decisões de Moraes e Dino para justificar a interferência direta no conteúdo do Google justamente no dia em que estava prevista a votação do projeto de lei.
A justificativa de apoiadores do PL das Fake News é que a medida, bastante criticada por ameaçar direitos fundamentais e atingir diretamente a liberdade expressão, protegeria a população de desinformação e discursos de ódio. No entanto, 76% discordam do projeto de lei segundo votação no site da Câmara dos Deputados. Mesmo contra a vontade majoritária da população, Moraes sugeriu, na decisão que enquadrou diretores das big techs, que caso o Congresso não aprove a medida, o próprio Supremo poderá regulamentar as redes.
O que diz o relatório usado pelo STF e governo contra empresas de tecnologia
O relatório divulgado no dia 1º de maio pelo Netlab, denominado “A guerra das plataformas contra o PL 2630”, sustenta que Google, Meta, Spotify e Brasil Paralelo veicularam anúncios contra o PL das Fake News com pouca transparência e burlando seus termos de uso. Segundo os ativistas, isso poderia configurar abuso de poder econômico às vésperas da votação do projeto de lei por tentar impactar a opinião pública e o voto dos parlamentares.
O texto ignora todos os riscos à liberdade de expressão manifestados pela parcela da população contrária à medida, que estavam sendo abordados nos comunicados divulgados pelas empresas de tecnologia, e foca apenas em interesses econômicos que envolvem o projeto de lei.
O Netlab também sugere que o Google estaria manipulando os resultados de busca para usuários que pesquisavam sobre o PL 2630. Diz, ainda, que o link colocado na página inicial do site que leva à página com críticas ao PL das Fake News seria um “ataque” à regulação das redes sociais.
O texto diz, ainda, que o Google estaria exibindo sites “nocivos” e “hiper partidários” na primeira página de buscas sobre termos relacionados ao projeto de lei. Um dos sites citados é o Boletim da Liberdade, de propriedade do ex-deputado federal Paulo Ganime (Novo/RJ), que exibe em tempo real um placar com o número atualizado de deputados federais favoráveis e contrários ao PL das Fake News. Outros veículos de viés conservador, críticos da proposta, também são rotulados de “nocivos” pelos militantes.
O relatório ainda questiona a baixa transparência do site de buscas em relação à disponibilização de dados sobre conteúdos pagos, o que não permite acesso aos autores dos anúncios, segmentação, valores investidos e usuários alcançados.
Da mesma forma em relação ao YouTube, o grupo de ativistas questiona o fato de vídeos que questionam o projeto de lei estarem com bom ranqueamento, aparecendo entre os primeiros lugares nas buscas. Por fim, reclamam do envio, pela plataforma de vídeos, de um comunicado aos produtores de conteúdo cadastrados apontando riscos do PL das Fake News.
Em 2021, a Gazeta do Povo já mostrou a intensa mobilização de professores e estudantes que atuam no Netlab para defender pautas de claro viés ideológico à esquerda. O alvo das “pesquisas” do grupo é, em grande parte das vezes, a “militância conservadora”, que costuma ser classificada como “extrema-direita”. A desinformação, tema frequentemente abordado pelos ativistas, é analisada como sendo algo quase que exclusivamente praticado por pessoas alinhados à direita, enquanto o cometimento de fake news por atores da esquerda é sumariamente ignorado.
Relatório é pouco técnico e repleto de análises subjetivas, diz especialista em segurança cibernética
Na avaliação do especialista em crimes digitais Wanderson Castilho, CEO da Enetsec, empresa norte-americana que atua com segurança cibernética, o relatório menciona um tema relevante, que é a falta de transparência sobre anúncios veiculados nas plataformas de comunicação.
O especialista, por outro lado, diz que a suposta manipulação de resultados no sistema de buscas do Google e do YouTube é muito improvável, e que o relatório apenas supõe, mas não consegue comprovar tal ocorrência, o que só seria possível mediante perícia feita no algoritmo.
“A forma como os resultados são exibidos tem a ver com o algoritmo da plataforma. Já atuei em mais de uma centena de casos em que existiam as mesmas dúvidas relacionadas a uma possível manipulação de dados, e as suposições não se sustentam. Fazer essas deduções apenas com prints de buscas feitas não é um argumento técnico válido perante a Justiça”, explica o especialista.
Outro ponto questionado por Castilho é a forma como o grupo se posiciona num relatório em princípio técnico. Ao longo do relatório, os ativistas manifestam claramente seu posicionamento favorável ao projeto e buscam reforçar suas teses nas argumentações. “Quando se faz um parecer técnico, não é correto se ater a opiniões, mas fixar apenas em questões essencialmente técnicas. E aquilo é um laboratório, então quando se coloca no relatório análises dos autores, afasta-se a confiança no documento, que passa a ser tendencioso”, diz o especialista. “O texto já está dando sua opinião política em cima dos relatos técnicos, o que invalida tudo. Não é um relatório imparcial”, prossegue.
Para jurista, são frágeis os argumentos de Moraes para enquadrar big techs
Na avaliação de Igor Costa Alves, especialista em Direito Constitucional e mestre em Direito pela Universidade de Lisboa, há fragilidades na decisão do ministro Alexandre de Moraes, que apontou possível abuso de poder econômico por parte das big techs.
“O abuso de poder econômico é um conceito de direito eleitoral, inaplicável portanto ao caso, e também de direito constitucional. A Constituição prevê o livre exercício da atividade econômica, mas prevê também a recriminação do abuso de poder econômico, que visa a dominação dos mercados, o monopólio de mercado. Não me parece que as empresas citadas na decisão estejam abusando do poder econômico simplesmente por divulgar informações e posições contrárias ao PL das Fake News”, afirma o jurista, que ressalta que o Marco Civil da Internet enfatiza a liberdade de expressão como fundamento da lei.
Já quanto ao parecer do Netlab utilizado na decisão, Costa Alves avalia que é frágil embasar uma decisão tão gravosa, que restringe a liberdade de expressão e de criação de conteúdo, somente em um relatório. “O uso de apenas uma pesquisa feita por uma universidade me parece que não dá retaguarda epistêmico-empírica – para usar um termo de Robert Alexy, jurista muito citado em precedentes do STF – para a decisão judicial”, afirma. “É extremamente frágil a menção a somente essa pesquisa para justificar uma intervenção em liberdades constitucionais muito caras”, reforça.
Moraes fez malabarismo para incluir big techs em inquérito das fake news, do qual é relator
A decisão do ministro do STF na última terça-feira, feita de ofício – ou seja, por iniciativa própria, sem ser provocado pelo Ministério Público –, ocorre no âmbito do Inquérito 4781, chamado popularmente de “inquérito das fake news”.
Acontece que o inquérito, que é sigiloso, apura supostos crimes contra a honra e disseminações de notícias falsas contra ministros do Supremo e nada tem a ver com as alegadas infrações que as empresas de tecnologias teriam praticado. A manobra, que permitiu a um membro do Judiciário interferir em um debate no Legislativo sobre tema de ampla relevância à população, faz com que o caso fique debaixo dos braços do ministro, que é relator do inquérito.
Por fim, Moraes levantou sigilo somente da decisão que tomou, porém manteve na obscuridade todo o restante do inquérito, que já dura quatro anos com uma série de perfis nas redes sociais de opositores do STF bloqueados e advogados dos investigados sem acesso integral aos autos do processo, o que fere a legislação sobre prerrogativas de advogados e a Súmula Vinculante 14, do próprio STF.
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