Garapa é uma mistura de água quente com açúcar que se tornou uma alternativa para alimentar crianças pobres do Nordeste. Esse cotidiano da fome foi transformado em um documentário e mostrado ontem aos paranaenses na abertura da campanha Alimentação: Direito de Todos. A bebida dá nome ao filme do cineasta José Padilha e serviu como base para discutir a inclusão do direito à alimentação na Constituição Federal. Se aprovada, a Proposta de Emenda Constitucional 047/2003 ajudará a garantir alimento para as 14 milhões de pessoas que hoje passam fome no país. A iniciativa é do Conselho Nacional de Segurança Alimentar (Consea) e a expectativa é que a PEC seja votada em outubro deste ano.
No filme Garapa são contadas histórias de três famílias nordestinas que não têm comida para dar aos filhos e fazem uma espécie de melado para garantir energia aos meninos e meninas. A realidade, no entanto, encaixa-se em todo o Brasil. Uma pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) com base nos dados de 2004 da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) mostrou que 35% da população, cerca de 72 milhões de pessoas, têm insegurança alimentar. Os níveis são divididos em leve, moderada ou grave, o que significa limitação de acesso quantitativo aos alimentos, com ou sem situação de fome. Há 6,5% da população no último estágio. Isso significa que perto de um a cada 13 brasileiros não teve o que comer durante os 90 dias que antecederam a pesquisa.
Política de Estado
Os especialistas acreditam que o Brasil pode dar um exemplo para o mundo ao incluir o direito à alimentação em sua Constituição. Isso porque as políticas deixariam de ser apenas de um governo para se tornarem políticas de Estado. Foi o que ocorreu com o Sistema Único de Saúde e com a Sistema Único de Assistência Social, por exemplo. Cria-se um sistema de garantias para que toda a população possa ter acesso a alimentos de qualidade. Os poderes Executivo e Legislativo federal, estaduais e municipais terão como metas a implementação de políticas e a fiscalização por parte do Ministério Público ficará mais fácil.
Hoje, é possível observar ações em vários setores das três esferas de governo. Isso ocorre porque a segurança alimentar demanda ações conjuntas, mas o problema é que não existe uma coordenação geral e articulada. Em muitos casos existem políticas municipais, mas não há diálogo com as estaduais. Outra questão é que, além do acesso imediato ao alimento, é preciso trabalhar áreas como fortalecimento da agricultura familiar, geração de renda e a institucionalização do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional.
O economista e professor da Universidade de Brasília Newton Narciso Gomes Junior afirma que a inclusão da alimentação como direito social na Constituição será muito positiva para a questão da fome no país, no entanto, ele reforça que as garantias fundamentais não podem ser dissociadas umas das outras. Assim, o acesso ao alimento não será totalmente efetivado se não for complementado pela saúde e educação. "Não adianta ter um pouco de saúde e um pouco de alimentação. Isso não são direitos básicos garantidos. Eles não são hierarquizáveis ou dissociáveis", explica. "Mas a inclusão desse item na Carta muda a perspectiva. A fome se trata com urgência e o direito é mais amplo, trata da condição humana."
O deputado federal Nazareno Fontelenes, presidente da Frente Parlamentar de Segurança Alimentar da Câmara dos Deputados, afirma que o alimento sempre foi tratado como mercadoria e não como direito. "A partir da aprovação da PEC, a própria população vai poder exigir e monitorar essa questão." Fonteneles diz que é preciso garantir tanto o acesso quanto a produção, criando políticas amplas e de abrangência geral. Outra questão defendida pelo deputado é a ampliação do Bolsa Família. Quem está na linha da pobreza teria uma renda secundária garantida. Ele argumenta que a proteção social está presente em diversos países da Europa. "É claro que é preciso autonomia. Mas as universidades públicas, por exemplo, são preenchidas majoritariamente com pessoas que têm boa renda e ninguém acha que isso é esmola", explica. "Hoje o país está no caminho certo. Enquanto em outros locais a fome está crescendo, seguimos o caminho inverso."
Para a nutricionista e professora da Pontifícia Universidade Católica do Paraná Maria Teresa Gomes de Oliveira Ribas ao se tornar um direito social, a alimentação organizará a oferta de serviços nos moldes de um sistema, como ocorre com a assistência social, por exemplo. "A lei terá de estipular as instâncias de funcionamento, a responsabilidade do Estado e a assistência em nutrição. Quando o alimento é inserido em uma lei máxima, como é a Constituição, torna-se uma garantia permanente. O direito à alimentação é o direito à própria vida."
Outra questão que Maria Teresa lembra é o aumento da obesidade na população brasileira. "Nem conseguimos superar a questão da fome e já temos de enfrentar todos os desdobramentos e comorbidades relacionadas à obesidade." Ela explica que a falta de informação e alimentação adequada, mesmo para quem tem condições financeiras, é uma violação de direitos.
Serviço:
A campanha será lançada hoje em Foz do Iguaçu. O evento começa às 19h30 no Centro de Recepção de Visitantes da Itaipu Binacional.