Seria o primeiro dia de aula, mas as portas de sete escolas do bairro da Penha não abriram naquele 9 de fevereiro. Era uma segunda-feira e, apesar da aparente tranquilidade, um mototaxista tinha sido morto na véspera, com um tiro nas costas, numa rua da Vila Cruzeiro, após ser abordado por policiais da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) da favela. Moradores acusam os agentes de terem atirado no jovem por ele ter demorado a atender a uma ordem de parar. O secretário de Segurança Pública do Rio, José Mariano Beltrame, classificou , na época, como “desastrosa” a ação dos policias militares, um erro que adiou o início das aulas para 2.310 alunos.
Foram 14 dias de episódios de guerra noticiados em comunidades das zonas Norte e Oeste neste primeiro semestre, que encerra no próximo dia 17, afetando a vida escolar de 20 mil alunos, a maioria do turno da manhã. Isso representa pouco mais de 13% do semestre, considerando que ele tem 107 dias letivos segundo o calendário escolar.
O caso mais recente aconteceu nesta quarta-feira, no Complexo da Maré. Quatro escolas, duas creches e dois Espaços de Desenvolvimento Infantil (EDI) suspenderam as atividades por conta de conflito na região, deixando 3.548 alunos sem aulas. A Escola Uerê, que funciona há 19 anos na favela, também fechou as portas. E não foi a primeira vez desde o início do ano letivo, em fevereiro. Fundada pela artista plástica Yvonne Bezerra de Mello, a unidade já teve que suspender as aulas 12 vezes este ano, prejudicando os 430 alunos matriculados.
“E a operação de hoje (ontem) foi na porta da escola, com tiros e gás de pimenta. Ano passado tive suspender as aulas várias vezes também, coisa que não tinha acontecido nos anos anteriores em 19 anos de atividades na Maré. Está cada vez pior e não vejo solução enquanto não mudar a política de segurança do estado. É uma política de confronto, não vejo estratégia no que eles fazem”, criticou Yvonne.
Ela lembra que os prejuízos dessa guerra ultrapassam o campo do aprendizado. Está afetando também a saúde psicológica dos alunos . “Tenho recebido crianças traumatizadas. Ninguém pode viver diariamente nessa condição de estresse, de estar numa sala de aula e ter que, de repente, se jogar no chão por causa de tiroteios. Outro dia, durante um confronto, um aluno se trancou no banheiro, aos gritos. Foi difícil tirá-lo de lá”, contou Yvone.
Yvonne conta que a escola foi obrigada a criar estratégias para proteger alunos, professores e funcionários. “Fazemos constantes treinamentos para ensinar a todos como se proteger em dias de tiroteios. Ninguém corre. Todos vão para um canto determinado pelo professor. São tantos dias de confrontos que acrescentamos na lista de chamada a letra T, que indica que naquele dia teve tiroteio na favela”, disse.
As escolas mais prejudicadas estão localizadas no entorno das comunidades dos complexos do Alemão e da Penha, na Zona Norte, e em Santa Cruz, na Zona Oeste, por conta dos conflitos recentes nas favelas de Antares, do Rola e no Conjunto Cesarão. Conflitos em Acari, Costa Barros, Praça Seca e Rio Comprido, todas na Zona Norte, também foram afetadas este ano por tiroteios em comunidades vizinhas.
Em todos os episódios, as secretarias Estadual e Municipal de educação costumam informar que o conteúdo perdido será reposto. Mas a educadora Regina de Assis, professora aposentada da Uerj, afirma que o tempo perdido nunca é recuperado.
“Nessa etapa de desenvolvimento da criança, o que foi perdido foi perdido. A reposição não compensa. É um prejuízo. A criança não para de se desenvolver porque não tem aula. Ela não recebe as informações, não interage com a escola, com professores. E isso piora a situação de estresse por conta dos conflitos. E no final vai ter que aprender em menos tempo”, aponta.
A educadora Tania Zagury, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, defende as escolas, que precisam priorizar a segurança já que o estado não está dando conta.
“A escola tem como objetivo a educação, tem que cumprir programa, mas tem também compromisso de cuidar da segurança da criança. As escolas nestas áreas de risco estão numa situação difícil. Até porque numa situação de tiroteio ninguém consegue aprender e nem ensinar. O que precisa ser visto é que cabe ao estado dar condição de segurança. É um prejuízo, mas a escola tem que colocar na balança e o que pesa mais é sempre a vida”, comentou a educadora.
Quem está perto do problema conta que 14 são somente os casos que chegam à imprensa e que este número é muito maior. Mães de alunos da Escola Municipal Mourão Filho, que fica num dos acessos do Complexo do Alemão, dizem que só este ano a unidade suspendeu as aulas pelo menos seis vezes por causa de tiroteios. Na fachada da escola, marcas de tiros mostram que a unidade muitas vezes esteve no meio do fogo cruzado.
“Toda hora fecha. Sem falar nos dias em que as crianças já estão na escola e começa o tiroteio. Acho que os alunos dessa escola são os mais prejudicados do complexo pela guerra entre os policiais e os traficantes”, acredita uma mãe que, por medo, não se identificou.
Outra relata que o filho da segunda série do Ensino Fundamental frequentemente necessita de reforço escolar. “São tantos dias sem aulas que quando retorna ele não consegue acompanhar. As professoras fazem o que podem, e a polícia não ajuda, já chega atirando”, falou.
De acordo com os episódios noticiados, o mês escolar de maio foi o mais prejudicado pela violência em favelas de diferentes bairros da cidade. O primeiro foi no dia 4, em Costa Barros. Um policial militar foi morto no fim da tarde durante uma operação no conjunto de favelas do Chapadão. Por causa do conflito, uma unidade com cerca de 240 alunos no período noturno fechou as portas. Na região do Rio Comprido foram dois dias consecutivos de guerra em maio, fechando escolas e creches. Lá a disputa foi entre facções criminosas no Complexo do Morro de São Carlos. Quatro pessoas foram mortas. Dois ônibus foram incendiados. Além de escolas públicas da área que não funcionaram, o comércio também fechou as portas. Um caos que se estabeleceu durante dois dias na região.
No dia 26 de maio, um confronto entre policiais da UPP Parque Proletário, no Complexo da Penha, não chegou a fechar escolas porque aconteceu no meio do turno da manhã. Mas a guerra assustou professores da Escola Municipal Monsenhor Alves, localizada na Avenida Nossa Senhora da Penha, que decidiram abrigar os cerca de 50 alunos nos corredores da unidade durante o tiroteio.
Além dos conflitos de ontem na Maré, este mês, o último do semestre, foram registrados mais dois episódios de violência que fecharam escolas em Santa Cruz e na Penha. No dia 6, mais de três mil alunos das redes Municipal e Estadual ficaram sem aulas no período da manhã devido a um intenso tiroteio próximo ao Conjunto Cesarão. Quatro escolas, um Ciep e duas creches não funcionaram naquele dia.
O maior prejuízo na educação provocado pela violência este ano foi registrado no dia 12 de junho: 8,5 mil alunos de 15 escolas de Santa Cruz ficaram sem aulas por causa de tiroteios entre policiais e traficantes nas favelas Antares e do Rola, onde não há UPPs. No dia 22 do mesmo mês, um intenso tiroteio entre policiais militares e traficantes das favelas São José Operário e Covanca suspendeu as aulas para 500 crianças de uma na região da Praça Seca.
Procurado pelo O GLOBO, o Secretário de Segurança Pública, José Mariano Beltrame, não comentou o assunto.
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