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Direito

Animais “quase gente”: o que está em pauta sobre os direitos dos não humanos

(Foto: Divulgação / Sou Amigo)

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Florzinha, Lady, Trico, Fofucha, Tigresa, Nino, Tigrão, Chorão e Pretinha são alguns dos autores de uma ação, que tramita na Justiça Cível da Bahia, em que 23 gatos processam uma construtora por, ao iniciar uma obra no terreno em que vivem, não prestar nenhuma assistência aos animais e nem permitir que vizinhos que costumavam alimentá-los e cuidá-los, dando medicamentos e providenciando a castração, adentrassem ao terreno. Em Cascavel, interior do Paraná, um pitbull, Jack, tenta uma indenização por maus-tratos contra o antigo dono. Beneficiada por um habeas corpus, a chimpanzé Cecília deixou o zoológico de Mendoza, na Argentina e vive, desde 2017, no Santuário de Grandes Primatas em Sorocaba (SP). A discussão sobre os direitos dos animais chegou a um ponto em que alguns juristas, não isentos de críticas, estão reconhecendo os bichos como sujeitos de “direitos não humanos”, a ponto de, sempre representados por um ser humano judicialmente capaz, serem aceitos como parte autora em ação judicial.

Equiparando os animais aos humanos, a advogada da ONG Sou Amigo, Evelyne Paludo, usa o Código de Processo Civil brasileiro para afirmar que “ninguém pode pleitear direito alheio em favor próprio”. “Com o animal como autor, a indenização é do animal. Será administrada pelo terceiro, mas com prestação de contas em juízo de que este valor foi efetivamente utilizado no tratamento ou em benefício do animal. Se entrasse em nome da ONG, eventual indenização não teria prestação de contas e quem recebesse poderia utilizar da forma como lhe conviesse”, disse a advogada, que é a real autora da ação em nome de Jack que foi resgatado pelo ONG acorrentado em local insalubre, exposto a fezes, urina, chuva e sol. Sujo, sem comida e com recipiente de água inadequado.

Apesar de se dizer sensível à causa, a juíza da 4ª Vara Cível de Cascavel, Gabrielle de Oliveira, não recebeu o processo. Ela afirmou que os animais podem se tornar sujeitos de direito, mas que, por enquanto, os pedidos devem ser feitos por terceiros.

“Não é crível que o próprio cachorro tenha ido até a clínica e farmácia e contraído débitos para seu tratamento em nome próprio, razão pela qual não pode por si pleitear ressarcimento”, despachou.

A ONG apresentou embargos, reafirmando um suposto direito de Jack ter acesso à Justiça. “Como todo sujeito de direito, ele tem garantido, pela Constituição, o acesso à Justiça, sem exceção. Ele pode demandar em juízo, que é diferente da capacidade processual, que muitas pessoas fazem essa confusão. O animal não precisa estar presente pessoalmente em juízo, assim com um bebê, um incapaz, uma pessoa em coma, ele tem um representante para isso”, sustenta a advogada.

Em Salvador, a ação proposta pelos 23 gatos, que têm como representantes Camila de Oliveira, moradora do prédio vizinho ao terreno que se apresenta como “guardiã dos autores”, foi aceita pela Justiça, que já marcou audiência de conciliação entre a representante dos animais, a construtora processada, o Ministério Público e a Secretaria Municipal de Proteção Social para março.

“Tramitam diversos projetos de lei que preveem que os animais não podem ser tratados como coisa, como são vistos hoje no Código Civil, e sejam compreendidos como uma personalidade despersonificada e sui generis. Uma personalidade jurídica, com direito de ser representada em juízo. A partir disso, nós advogados animalistas, que lutamos pelo direito animal, começamos a ingressar com ações com os animais como autores, representados por uma pessoa”, comenta a advogada Ximene Perez, que defende os gatos no processo.

Natureza jurídica dos animais

Entre os projetos que tramitam no Congresso, o mais próximo da aprovação é o PL 27/2018, do deputado Ricardo Izar (PP-SP), que, segundo sua justificativa, “visa tutelar os direitos dos animais, domésticos e silvestres, conferindo-os lhe novo regime jurídico, sui generis, que afasta o juízo legal de ‘coisificação’ dos animais”, atribuindo aos animais o conceito de sujeito de direitos não humanos, a partir do entendimento dos animais como seres sencientes, que sentem dor, emoção, e que se diferem do ser humano apenas nos critérios de racionalidade e comunicação verbal. Aprovado pelos deputados no ano passado, o projeto recebeu emenda no Senado (para excluir os animais de rodeio e vaquejada, bem como os criados para a alimentação humana) e deve ser novamente apreciado pelo plenário da Câmara já nas primeiras sessões deste ano.

“O projeto altera a natureza jurídica do animal. Deixa de ser coisa e passa a ser sujeito despersonalizado com direitos. Com direitos e sem obrigações. Então fica mais fácil para obter a tutela jurisdicional do animal e também obriga o Estado a tomar atitude em caso de maus-tratos”, explica o deputado. “A nova lei também vai facilitar a discussão em vara de família, sobre a tutela do animal doméstico”, diz.

Izar afirma que o projeto garante ao animal direitos como moradia, alimentação e saúde. “Se a gente altera o Código Civil, fica mais fácil configurar maus-tratos ao transformar o animal numa figura com direitos, porque, hoje, ele não tem direitos”, diz.

Professora de Direito Civil, a advogada Karla Ferreira de Camargo Fischer comenta que, por muito tempo, os animais foram tratados como seres que não demandavam, que deveriam ser apenas objetos no Direito, não seres com tutela. “Agora temos alguns provimentos que passaram a inverter essa situação. No Direito de Família, isso está em voga, com a questão da custódia. Já há até decisões de guarda compartilhada de animal de estimação, levando em consideração laços afetivos do animal”, diz.

Ela cita que, além da guarda compartilhada de animais ou o estabelecimento, até, de horários de visitas, como ocorre com os filhos em processos de divórcio, o Direito vai, aos poucos, se transformando para entender o animal como um ser senciente, a ponto de poder constar como autor de uma ação ou como beneficiário de um testamento, por exemplo.

“Nos Estados Unidos já é possível indicar um pet como herdeiro. No Brasil, há o entendimento de que quem recebe uma herança tem de ter a capacidade para aceitar ou renunciar. Mas nada impede que se adotem mecanismos para se deixar determinada quantia em benefício a um animal, mas em nome de um curador”, explica.

Segundo ela, um dos principais entraves para o maior acesso dos animais ao Direito é a ausência de um registro oficial dos animais.

“Animais não têm documentos, não têm registros, não têm certidão de óbito, por exemplo. Numa disputa por guarda, a parte que ficou com a tutela pode chegar numa audiência e falar que o animal morreu ou fugiu, e não há o que se fazer. Não há uma identificação obrigatória, o registro em cartório é facultativo. Quem sabe, no futuro, caminhe-se para uma obrigatoriedade e assim teremos o animal e seu responsável identificados e registrados”, diz.

Ricardo Izar lembra que já tramita na Câmara outro projeto de lei para criar o registro nacional de animais domésticos. “Assim teremos controle da posse responsável, combatendo o grande problema que existe hoje que é o abandono”, diz.

Críticas

O especialista em Direito Civil Érico Klein não vê, na legislação atual, a possibilidade de animais figurarem como autores de ação.

“Os animais não são, hoje, sujeito de direitos, não têm capacidade postulatória. Não têm capacidade de entrar em juízo ser titular de ação”, diz.

Com isso, ele refuta o argumento de que terceiros não poderiam postular direito do animal por ser direito de outro.

“Não é direito de outro. Animal não é outro, é um animal, não é sujeito de direito. Não poder postular direito de terceiro em nome próprio é uma situação relativa a pessoas que são detentoras de direito”, diz.

Para ele, tanto as ações quanto o projeto de lei em tramitação no Congresso têm muito mais um efeito simbólico para chamar a atenção para a causa, que efeito prático.

“A consequência prática de considerar titulares de direito seria muito pequena. Hoje eles são representados por seus guardiões, ou pelas Ongs. Com ou sei lei, nenhum animal ingressará por livre arbítrio na Justiça. Um humano vai ter que postular esse direito pelo animal e, hoje, isso já pode ser feito”, acrescenta, criticando, ainda que o projeto beneficiar apenas os animais domésticos.

“Se não estabelece o status de ser senciente para animais criados para a alimentação humana e, agora, nem mesmo para os animais de rodeios e vaquejadas, não é um projeto de direito dos animais, mas de direitos dos pets”.

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