Mais de três décadas se passaram e os debates em torno da Lei da Anistia parecem não ter fim. Promulgada em 1979, em plena vigência da ditadura militar (1964-1985), a legislação permitiu a volta de presos políticos ao país e também beneficiou militares acusados de crimes de violação dos direitos humanos. Na tentativa de rever a lei e punir os torturadores, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) deve entrar com ação no Supremo Tribunal Federal (STF).
Recentemente, a discussão foi novamente levantada após o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, considerar que os crimes de lesa humanidade, como a tortura, são imprescritíveis. Em 2010, ao julgar outra ação da OAB, o STF já havia se posicionado contra a revisão da anistia.
Até o momento, a primeira ação penal aceita pela Justiça em que agentes do Estado estão sendo acusados de crimes envolve o coronel reformado do Exército Carlos Alberto Brilhante Ustra e os delegados de polícia Alcides Singillo e Carlos Alberto Augusto pelo sequestro qualificado de Edgar de Aquino Duarte, ocorrido em 1973. Duarte continua desaparecido até hoje.
Eles poderão ser responsabilizados criminalmente, e não apenas civilmente, como já ocorreu em junho do ano passado com Ustra, condenado em primeira instância a pagar indenização de R$ 100 mil pelas torturas que mataram o jornalista Luiz Eduardo Merlino em 1971.
Segundo a professora de Direito Constitucional da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Vera Karam, a revisão da Lei da Anistia poderia aumentar o número de denúncias contra os torturadores. Ela afirma que a lei foi forjada nos gabinetes do governo ditatorial militar e pouco refletiu a vontade popular. "Ela colocou no mesmo nível as vítimas da ditadura e seus algozes, possibilitando a anistia de ambos."
Vera defende a necessidade de a sociedade lutar para que torturadores sejam responsabilizados judicialmente. "Cobrar um novo julgamento é uma tarefa do povo brasileiro e que pode ser defendido pelas comissões da verdade diante da escuta dos relatos narrados sobre as atrocidades cometidas por agentes do Estado e que ainda estão impunes."
O jurista Ives Gandra Martins entende que, como a Anistia já foi julgada pelo STF, é impossível ela ser revogada. "Na lei não pode haver retroatividade. Sou contra as torturas e as prisões ilegítimas que ocorreram no regime militar, mas a Lei da Anistia não pode ser revisada", afirma.
Segundo ele, é necessário interpretar o Direito como ele é. "Foi uma lei para os dois lados e na época foi justa. O que se pretendia era trazer as pessoas exiladas de volta para o Brasil e isso foi possível graças à Lei da Anistia", ressalta.
Ele acredita, porém, que a cobrança pela revisão da legislação é legítima. "Em uma democracia, como vivemos hoje, cada um pode lutar pelo que acredita ser justo", salienta.
Os presos
Alcidino, um curitibano no navio-presídio
Da janela pequena e redonda, a única coisa que o curitibano Alcidino Pereira enxergava era o mar. Aos 28 anos, ele foi preso já nas primeiras horas do golpe, no dia 1º de abril de 1964, na sede de um sindicato. O então advogado de entidades trabalhistas em Santos, litoral paulista, e região, foi levado para o navio-presídio Raul Soares.
Antes, agentes militares o tinham levado para masmorras úmidas e escuras em uma delegacia de polícia. "Era o começo do golpe e ninguém sabia muito bem como agir", conta Alcidino. No mesmo dia foi levado para a Polícia Marítima, onde encarou o primeiro interrogatório. Ao entrar na cela do navio, Alcidino percebeu que a vida não seria fácil. "Para onde você olhava só tinha o mar. Você não falava com ninguém."
Somado a isso, o terror psicológico era grande. "Tinha gente treinada para isso." Cansou de ser chamado para interrogatórios que nunca aconteciam em plena madrugada. "Não deixavam dormir." Sem falar que muitas vezes os presos eram chamados pelos comandantes sob alegação de que seriam soltos por habeas corpus. "A gente criava uma expectativa. Mas era tudo mentira. Eu vi pelo menos três ficarem loucos na cadeia."
Ficou preso até dezembro de 1964, quando finalmente um habeas corpus foi realmente aceito e ele deixou a cadeia. Mas ao saber que era a Justiça Militar que iria julgar a ação, Alcidino perdeu as esperanças. "Era certo que não iria ganhar esse processo. Em 1965, meu escritório já tinha sido invadido. Como o meu caso ainda ia ser julgado não poderia sair do estado de São Paulo, mas diante de toda circunstâncias voltei para Curitiba."
Usou a capital do Paraná como o começo da sua rota de fuga. Iria sair do país. Após contatos políticos foi até o Rio Grande do Sul e de lá partiria para o Uruguai. Ele só não contava que um companheiro por receio da ação militar negasse ajuda. "Estava na fronteira, cheio de militares, com uma mala na mão. E o ônibus que ia para o Uruguai sairia dali três horas". Resolveu ser prudente e ficou escondido em um bosque.
Ao chegar ao Uruguai soube que a situação lá não estava muito melhor do que no Brasil. Militares brasileiros realizavam operações no país vizinho para capturar aqueles que combatiam o regime. "Não era seguro. Por isso articulei com um grupo de amigos minha saída para a França." Passou 14 anos na Europa e só conseguiu voltar ao país devido à Lei da Anistia.
Judite, presa na Chácara do Alemão
O Ato Institucional número 5 (AI-5) mal havia sido promulgado em dezembro de 1968 quando os alunos da UFPR e da antiga Universidade Católica do Paraná tentaram organizar um congresso de estudantes da União Paranaense de Estudantes (UPE) em local conhecido como Chácara do Alemão, no bairro Boqueirão, em Curitiba. A ação era uma resposta à repressão militar realizada durante o Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE), em Ibiúna, interior paulista, em outubro, que culminou na prisão de quase mil pessoas.
Os membros da UPE estavam iniciando os debates quando Judite Barboza Trindade viu um caminhão da Polícia Militar chegar às redondezas. "Os militares cercaram o local e prenderam todo mundo. Diziam não corram, senão eu atiro", conta. Integrante da UPE, Judite estava entre os presos. "Acabei pegando um ano de prisão."
Apesar de não ter sido torturada enquanto esteve no Presídio do Ahú, Judite presenciou muita gente com sinais da violência. "Muitos grupos chegaram torturados. Lembro-me de um grupo de camponeses que era do Sudoeste [do Paraná] com marcas de tortura".
Judite começou a combater o regime imposto quando ingressou no curso de História da UFPR em 1968, participando dos movimentos estudantis. Integrou passeatas, muitas reuniões e panfletagens com manifesto contra o regime.
Ao sair do Ahú, ela se deu conta de que muita gente que militava contra a ditadura nem estava mais na cidade. "Não tinha nem como participar [de manifestações]. A repressão era maior. A ditadura cria aparatos para as coisas não acontecerem." Judite manteve-se atuando mais nos bastidores a fim de organizar ações contra o governo militar.
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