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Lugares incomuns

Beleza que não está no mapa

"É batata", diriam os antigos. Paisagens urbanas bizarras, curiosas ou desajeitadas pela própria natureza tendem a se tornar objeto de culto, mesmo quando alvo de críticas ardidas como pimenta. Basta pensar na piada que rola entre os franceses – a de que o lugar mais bonito de Paris fica embaixo da Torre Eiffel, justamente porque dali não se pode ver o monumento mais famoso da cidade. Tem lá sua graça, mas agora é tarde: a capital da França e sua torre de ferro gigantesca se confundem.

Ao passar um pente-fino na paisagem de Curitiba, o resultado não fica atrás. A diferença, na terra do planejamento, também tende a triunfar sobre o bem e do mal. No quesito "muito estranho", a Travessa da Lapa ganharia disparado numa votação popular. Já quando a pergunta é "o que é isso?", não há unanimidade. Os votos podem recair sobre a antiga chaminé da Fábrica Todeschini, no Batel, uma sobrevivente da pré-história industrial da cidade, ou sobre ruas e praças que vivem à margem de tudo, mas fazem a festa de quem prefere lugares incomuns.

Segue reto pela São Francisco

O arquiteto Irã Dudeque não pestaneja na hora de apontar os endereços de sua "Curitiba estranha". O primeiro deles é a Rua São Francisco, no Centro Velho. "Eu me pergunto como é que essa via colonial sobreviveu à febre de alargamentos na região. É tão diferente que acaba sendo uma anomalia, uma paisagem única na cidade." Dudeque conta que quando passa pelas pedras da São Francisco tem a sensação de estar em qualquer outro lugar do mundo.

A segunda estranheza é a casa do arquiteto Osvaldo Navarro Alves, no Pilarzinho. Desconhecida da maioria, a residência ecológica enche os olhos dos especialistas e se apresenta como uma saída simples e inteligente para conciliar áreas verdes e concreto.

A Linha Norte–Sul, que liga os bairros Santa Cândida a Capão Raso, seria uma entre tantas não fosse um detalhe de sua geografia. Ao partir da Estação Central, ao lado do Correio Velho, os ônibus descem por cinco quadras daquela que mereceria o título de a mais estranha via de Curitiba, a Travessa da Lapa. Contando, ninguém acredita que a cidade mundialmente famosa por seu planejamento urbano tem uma rota de coletivo que, desde 1995, passa dentro de um condomínio de apartamentos de 23 andares, dividido em 92 famílias, com uma pequena galeria comercial no térreo. Dá até para passar a mão na lataria quando o coletivo passa.

A estranheza acabou por fazer da travessa uma espécie de ponto turístico às avessas, citado por nove entre dez curitibanos indagados sobre as paisagens mais surpreendentes da cidade. A curiosidade também se deve ao movimento da linha. Segundo a Urbs, na casa dos 15 mil passageiros por dia, algo próximo de 75 mil pessoas.

Embora lugar-comum para quem pega o "busão" todo dia, é fatal que haja sempre um novato na tripulação, arregalando o olho no momento em que se cruza o trecho entre a José Loureiro e a André de Barros. "Qualquer pessoa sabe dizer onde é a Travessa da Lapa. Virou a rua mais conhecida de Curitiba", elogia a comerciante Florinda Ribeiro, 40 anos, dona do Flor Cabeleireira.

Com exceção do condomínio de R$ 150 – "injusto", já que o local virou uma calçada aberta a Deus e ao mundo – Flor se desmancha de amores pelo ponto onde trabalha há 12 anos. Pouco se importa com barulho do ônibus, fazendo do som do secador de cabelos parecer uma música lenta. "A travessa deveria ser um ponto turístico", propõe, no que é apoiada pela cabeleireira Terezinha Ferri, 59 anos, para quem a única preocupação se resume ao risco do ônibus bater no prédio. "Morro de medo. Tenho certeza que cairia tudo. A viga do edifício está exposta", profetiza.

Cinco passos adiante, o tatuador Baganan, 29 anos, quatro de "galeria do prédio furado", vive uma relação de tapas e beijos com a Lapa. A concorrência de casas de tatuagem anda arisca – são 150 estabelecimentos só no Centro. Por mais excêntrica que possa ser a clientela, há quem prefira desviar da travessa e de seus problemas sociais. A área em que a linha de ônibus invadiu a do condomínio – o equivalente a 30% de um lado da quadra – é povoada de desocupados. "Nem adianta mais chamar o Socorro Social", lamenta o tatuador. Também serve de estacionamento para carrinheiros, pipoqueiros, camelôs, formando um congestionamento digno de passeata. Baganan nem pensa nisso. Sua tribo está logo adiante.

Tão curioso quanto aquele prédio é a quantidade de jovens que fizeram da Travessa da Lapa a república teen do Centro, graças a dois pontos de lazer underground. Na esquina com a Visconde de Guarapuava está o Campo Base, um ginásio de escalada apinhado de gente com energia de sobra para, digamos, subir pelas paredes. Poucos metros adiante vê-se a pista da skate da Drop Dead. Da rua dá para ouvir as estocadas na madeira do piso. Mas a paisagem de cabeleiras despenteadas dura pouco. Na altura da Sete de Setembro, a via envelhece subitamente diante do Clube dos Solitários arruinado por um incêndio, e um sobrado velho, o Vila Rosa, já se despedindo da história. A dedução é sempre a mesma – a travessa sonha em ser famosa, mas faz hora extra como corredor para o ônibus. Dureza.

Por que não?

Para o arquiteto César Ribeiro, 23 anos, a Travessa da Lapa tem como trocar de roupa: de lugar de passagem pode passar a espaço cultural ao ar livre. Não se trata de um tiro para o alto. Quando estava para se graduar na Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), saiu atrás de um espaço do Centro Velho que pudesse ser revitalizado, ou requalificado, como dizem os profissionais do ramo. Pensou no Passeio Público, mas não resistiu ao desafio da ruela – objeto de desejo de diversos urbanistas, incluindo o orientador da projeto, o arquiteto Clóvis Ultramari.

A proposta de Ribeiro impressionou a banca pela qualidade do levantamento e pelas soluções simples que consagrariam a Lapa como a área cult do Centro. Parte dos paredões, por exemplo, seria substituída por gradis, descortinando a paisagem e amenizando a atmosfera algo claustrofóbica da travessa. No lugar do sofrível calçamento de pedra, blocos de concreto em cores preto e cinza, mas com detalhes em lajota verde, cor, aliás, dominante em todo o trajeto.

Mais – em vez de publicidade, projeções, à maneira de slides, alternando-se nas paredes; iluminação indireta em placas de alumínio curvas e suspensas e, o melhor, dois pocket parks – pequenos jardins - e uma praça, instalada em dois lotes. Impossível? Não. Há miolos de quadra dando sopa em alguns pontos do percurso, pedindo para ganhar canteiros e gente sentada em volta. "É um lugar histórico, mas não é convidativo. Além de torná-lo mais homogêneo, pensei em maneira de fazê-lo ainda mais multifuncional. A travessa desperta a curiosidade, mas afugenta com sua sensação de corredor", ilustra Ribeiro.

O toque-de-midas fica por conta dos suportes para exposições ao ar livre e, segurem, uma galeria com passarela aérea, de uma esquina a outra da Visconde de Guarapuava, para abrigar o Museu Guido Viaro. Nada mal para a rua que tem prédio furado e uma galeria suspensa na esquina com a Marechal Deodoro.

Além de fazer justiça a Viaro – cujos desenhos seriam reproduzidos em vários pontos da travessa – o arquiteto salvaria a lavoura levando gente para o corredor, sem que o Ligeirinho precisasse circular em outra freguesia. Que tal?

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