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Sebastião Ozir Toaldo construiu um altar para Nossa Senhora na frente da casa onde nora, em Curitiba | Marcelo Andrade/Gazeta do Povo
Sebastião Ozir Toaldo construiu um altar para Nossa Senhora na frente da casa onde nora, em Curitiba| Foto: Marcelo Andrade/Gazeta do Povo

Nem café nem Pelé, nem Carmen Miranda nem Roberto Carlos. O maior e mais longevo símbolo brasileiro é uma pequenina imagem de barro de Nossa Senhora da Conceição Aparecida – a Aparecidinha – cujas origens remontam ao início do século 18. Seu culto desafia o tempo e os credos.

Na Vila das Torres, em Curitiba, quem acende a vela para a imagem – entronizada numa sacada, na esquina da antiga ocupação com a Rua Chile – é a evangélica Rosemara Farias. Dona da pele “negra, quente e meiga” comum a mais da metade dos brasileiros, não esconde a semelhança com a “padroeira da casa”. Por acaso, trajava uma blusa de renda com o azul inconfundível do manto da Aparecida [cor que deu samba enredo, na voz de Clara Nunes].

Ali mora Jesus Pinto de Farias, a quem a Torres deve o apelido de Vila Pinto. É devoto aguerrido: vai duas vezes por ano a Aparecida do Norte, lista um rosário de graças alcançadas, várias com sabor épico. A gratidão invadiu a parte de fora da moradia. “Vejo as pessoas se benzendo quando passam de carro aqui na frente. E não é de medo”, diz Jesus. Não espantem vê-lo às lágrimas logo aos primeiros acordes de “Viva Mãe de Deus e Nossa”, uma das músicas do inflamado hinário da Aparecida. Não chora sozinho.

A comunidade que tem a Virgem de Aparecida como titular de uma capela é pródiga em práticas explícitas de fé – a exemplo do que acontece com o comerciante Alexandre Wilfert, 37 anos. Sua narrativa é cheia de adrenalina. Conta em detalhes o ocorrido com a filha, que sobreviveu a um acidente de carro; da iniciativa de mandar grafitar um muro da ex-favela com a imagem da Aparecida; e da trama que culmina na grafitagem do próprio corpo: Nossa Senhora está tatuada no antebraço de Alex. “Falta desenhar o anjo”, avisa.

A Gazeta do Povo mapeou 25 espaços da cidade e região – a maioria inusitados – em que a Aparecidinha está presente. A lista passa por quadros de formatura, balcões de bares, salões de beleza e nichos na frente de casas. A manifestação mais radical é a capela de 8 metros de altura, em forma de Aparecida, erguida pelo ex-radialista Lourival Pedrazzani, o “Palitto”, aberta ao público, dia e noite, no Jardim das Américas.

Nas histórias recolhidas, alguns padrões se repetem: os devotos dão testemunhos de curas de doenças e contam experiências místicas – incluindo sonhos, aparições e o odor de rosas, comum a essas manifestações. Outros dão continuidade a tradições familiares – o que inclui batizar os filhos com o segundo nome de Aparecido ou Aparecida. Alguns se limitam a pedir proteção – caso da comerciante Edite Hoepfner, do Umbará. A maioria não dispensa as romarias anuais. Quantas são, só Deus sabe: a Cúria Metropolitana não tem o controle do número de ônibus nem de fieis que vão ao Vale do Paraíba a cada ano. Pena. Encontrar um banner com os dizeres “Faço excursões a Aparecida” é quase tão fácil em Curitiba quanto achar uma farmácia.

A devoção não raro resulta na brasileiríssima prática do colecionismo – outra proeza da grife da Aparecida. A santinha triangular e coroada deveria ser estudada nos cursos de Design e de Publicidade. A forma reina na coleção de mais de 500 xícaras de café do jornalista Ali Chaim – conhecido por sua performance em programas policiais. “Daqui não sai”, brinca, para desagravo dos pedintes. De pai muçulmano e mãe católica até a última gota de sangue, Chaim se dividiu entre as duas religiões “até onde deu”. O pai dizia à mãe quando adoecia: “Se Alá não me ajudar, peça à tua santa”. Ela pedia. A devoção ficou na memória do filho que transitou, por décadas, pelo chamado “mundo cão”, colecionando motivos para não acreditar em nada. Ele resistiu. Podem duvidar, mas a pequena porcelana timbrada aparece e desaparece em meio às anárquicas coleções do repórter veterano.

“Como vocês demoraram a vir”, agradece, braços abertos, o mecânico Sebastião Ozir Toaldo, morador do Butiatuvinha. Há tempos ele se julga merecedor de uma reportagem. Coleciona incontáveis imagens da Aparecida – uma delas virou ermida no quintal. Qual na Vila das Torres, tem quem pare para rezar e pedir que Ozir os inclua nas preces: a conversa que circula na antiga colônia italiana é que ele tem linha direta com a Padroeira. No Ganchinho, a cabeleireira Joelma Palmeira recebe encomenda religiosa semelhante. Conhecida “até das pedras”, costuma ganhar réplicas da Virgem trazidas pelas clientes. Não por menos – a filha de Jô esteve cara a cara com a Aparecida, episódio que a mãe descreve com tintas fortes, enquanto faz cabelos e unhas.

Aparições em sonhos foram relatadas por Jô, pelo comerciante José Cordeiro e pela cuidadora de idosos aposentada Maria da Rosa. A exemplo de Rosemara, difícil não ver em dona Maria traços da Virgem de Aparecida. Pequenina, humilde e cativante, entronizou a imagem num nicho de sua casa de Cohab – ele é das pioneiras da Vila Nossa Senhora da Luz, CIC, fundada em 1966. “Hoje não peço mais nada para mim. Peço pelo Brasil”, avisa a piedosa, em coro com a Nação.

Em tempo. Crentes ou não, a palavra de ordem é visitar a Igreja Nossa Senhora Aparecida, no bairro Seminário. Curitiba tardou a ter um templo dedicado à Padroeira do Brasil – a paróquia é de 1953. Fica num platô e há 20 anos está sob cuidados do padre Pedro Carlesso. Faz pouco, ele criou um “espaço Aparecida” no terraço ao lado da construção, com vista para o Campo Comprido. O local é um marco da “Aparecida do Sul” – um lugar que de fato existe.

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