A Polícia Militar do estado do Rio de Janeiro (PM-RJ) apreendeu, de janeiro a agosto deste ano, 213 fuzis, um aumento de 31,5% em relação ao mesmo período do ano passado, quando houve o recolhimento de 162 armas deste tipo. Esse arsenal nas ruas tem ligação direta com a falta de fiscalização nas fronteiras. Reportagem do jornal O Globo, publicada no domingo (13), mostrou a vulnerabilidade nos limites do Brasil: uma equipe de jornalistas comprou uma réplica do fuzil M16, semelhante ao usado pela Polícia Civil do Rio, em Ciudad del Este, no Paraguai, e passou sem problemas pela barreira com Foz do Iguaçu, no Paraná. Ainda percorreu mais 1.700 quilômetros até chegar ao Rio, sem ser revistada, mostrando a facilidade com que se pode entrar no país com uma arma, verdadeira ou não.
A arma adquirida pela equipe do jornal era do tipo airsoft, usada em jogos que simulam confrontos militares. Bandidos já perceberam a semelhança deste armamento com fuzis reais e têm utilizado as réplicas em assaltos. Segundo o coordenador do setor de inteligência da PM, coronel Antônio Jorge Goulart, a corporação vem apreendendo réplicas de fuzis de airsoft e paintball em flagrantes de roubo, mas elas não entram nas estatísticas oficiais.
“Elas são muito semelhantes aos fuzis verdadeiros. Estamos percebendo que os criminosos estão comprando fuzis de airsoft ou paintball para cometer roubos de rua. No 3º BPM (Méier), que abrange 23 bairros, o número de réplicas apreendidas é grande. A legislação deve reprimir o porte deste tipo de arma. Se uma pessoa for flagrada assaltando com uma delas, é presa. Mas, se estiver só portando, é apenas conduzida à delegacia para o registro, pois o fato é considerado atípico, sem punição. Mas quem é que anda com um fuzil de airsoft na rua, principalmente à noite? A legislação tem que ser mais dura”.
No caminho feito pelos repórteres num ônibus interestadual, do Paraná para o Rio, boa parte dos postos da Polícia Rodoviária Federal (PRF) estava sem policiais e às escuras. O assessor nacional de comunicação da PRF, inspetor Diego Brandão, reconhece o problema, mas explica que há falta de efetivo na corporação para manter uma vigilância efetiva:
“Hoje, temos 10 mil homens para 70 mil quilômetros de rodovia. É humanamente impossível, por exemplo, fiscalizar os veículos que saem de Foz do Iguaçu. A PRF trabalha por amostragem, com rotas específicas e criminalística. A ideia é potencializar o trabalho. E pode acontecer de não haver abordagem”, diz Brandão, citando os números de abordagem da Operação Independência, realizada de 4 a 7 de setembro deste ano nas rodovias federais.“Foram quase 130 mil veículos fiscalizados. É uma amostragem, mas nossos números são consideráveis. A malha rodoviária é muito grande, e o fluxo e a frota de veículos cresceram muito nos últimos anos.”
Sobre a situação das instalações abandonadas, Brandão tem duas hipóteses: os policiais poderiam estar fazendo rondas pela região ou determinados postos podem ter sido desativados e remanejados para outro ponto.
Procurados pela reportagem, o Ministério da Justiça e a Polícia Federal informaram que só se pronunciariam hoje sobre o problema da vulnerabilidade das fronteiras.
Políticos e especialistas ouvidos são unânimes em cobrar uma fiscalização mais efetiva das fronteiras e uma investigação mais profunda por parte das polícias Federal e Civil dos estados para chegar aos verdadeiros “senhores das armas”. Presidente da Frente Parlamentar de Segurança Pública, conhecida como “bancada da bala”, o deputado federal Alberto Fraga (DEM-DF), defensor de mudanças no Estatuto do Desarmamento para ampliar o porte de armas, diz que o papel das Forças Armadas tem que ser repensado:
“Temos que redirecionar o emprego das Forças Armadas para ocupar nossas fronteiras. Tem que ter uma fiscalização mais rígida para que se evite essa entrada de armas. Tem muita gente dentro dos quartéis sem ter o que fazer, esperando uma guerra que nunca vai vir”.
O consultor de segurança pública general Fernando Sardenberg reconhece a vulnerabilidade das fronteiras, mas lembra que o Exército tem um Sistema de Monitoramento de Fronteiras (Sisfron), que inclui vigilância eletrônica.
“O Sisfron forma um grande arco de proteção fronteiriço com monitoramento eletrônico por satélites e radares de vigilância terrestre”.
Para o professor Eurico Figueiredo, diretor do Instituto de Estudos Estratégicos de Segurança (Inesp) da UFF, investir em tecnologia, com aparelhos de raios X e detector de metais, é fundamental para o patrulhamento das fronteiras:
“O simples fato de ter pórticos fixos, mas com policiais bem aparelhados, com detectores, já inibiria isso. Outra coisa seria uma fiscalização mais sistemática nos veículos, principalmente ônibus. Se cem pessoas passam com um fuzil, são cem armas aqui. É uma coisa séria. Isso prova como as gangues podem se armar sem nenhum controle”.
Os sociólogos Ignacio Cano e Julita Lemgruber e a antropóloga Alba Zaluar criticam a falta de investigação das polícias. Ignacio ressalta que a corporação nunca chega ao receptador do fuzil:
“É claro que tem o varejo e o atacado neste negócio ilegal. O atacado passa por contêineres, grandes caminhões e embarcações. Ele tem que ser investigado com rigor, o que a gente não vê.”
Alba Zaluar engrossa o coro. “Até hoje a Polícia Federal e as polícias civis não fizeram nada. Os Ministérios Públicos também. Isso difunde a violência. O nosso principal problema não é maconha nem a cocaína, mas sim o tráfico de armas”.
Na opinião de Julita, o que choca no episódio da entrada de armas é o desleixo e a falta de compromisso com a coisa pública por parte de quem deveria vigiar as fronteiras:
“A gente sabe que o tráfico de armas rende milhões e é mantido por um esquema de corrupção forte. Mas nos choca ainda mais quando vemos esta facilidade, mesmo sem que ela (corrupção) exista. Isso revela o tamanho do nosso problema”.
O secretário de Segurança, José Mariano Beltrame, recebeu do jornal a réplica do fuzil e o entregou à 12ª DP (Copacabana), que pretende enviar a cópia para perícia. Ele encontrará senadores e deputados federais, depois de amanhã, para defender mais rigor no Estatuto do Desarmamento:
“O assunto tem que ser tratado como prioridade. Estamos falando da entrada de armas que causam o extermínio de uma população”.
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