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Diagnóstico

Vizinhos suspeitam da "Síndrome de Diógenes"

De que mal sofre a mulher que já chegou a juntar 25 toneladas de lixo em casa? Segundo suas vizinhas, Araci Minaif já admite estar doente e que precisa se tratar. Às amigas, diz que é como se "uma mão a puxasse pela cabeça e a conduzisse às ruas" para recolher lixo e trazer para casa. Na primeira vez em que a reportagem da Gazeta do Povo esteve na casa dela, em 2009, o resultado da garimpagem da idosa pelas ruas da cidade causou impressão. Havia cômodos inteiros nos quais não era possível entrar. Parte do chão estava forrado por cobertores. O quintal estava povoado por animais de estimação.

Controvérsias

De acordo com o grupo Amigos da Araci, não há consenso entre os médicos sobre a necessidade de colocá-la num asilo. Longe de casa e das pessoas com quem tem relações de afeto, a tendência seria seu caso se agravar. É inclusive o que versa a literatura sobre a Síndrome de Diógenes, que condena a internação.

A menção a Diógenes, filosófo da Antiguidade, é equívoca, pois o pensador pregava a liberdade e o desapego. Aqui, contudo, serve como referência à falta de asseio do pensador. A doença também é conhecida como Síndrome de Noé ou Síndrome de miséria senil.

É tema da série de TV Obsessivos Compulsivos, do canal por assinatura A&E.

Mobilização

O que propõem os "Amigos da Araci" à Promotoria do Idoso do Ministério Público:

• Cuidadora: Adriana Kachutzki, ajudada por sua mãe, passaria a morar com Araci Minaif.

• Rotina: Sete dos cerca de 20 membros do grupo se comprometem a manter expediente de visitas e apoio a Araci.

• Reforma da casa: Obras tinham começado antes do albergamento, em abril. Entraram como parceiros na reforma Impermix, Cepil Dedetizadora, Restaurante Lokal, Vergínia Tintas, Styllo Tintas, Modro e Seleme Papéis. Grupo aceita doações de telhas e tijolos. Urgência é erguer o muro para que gatos e cachorros não sejam deixados no terreno.

Há pouco mais de um mês, um grupo de moradores do Alto da XV reclama a volta para casa de uma de suas vizinhas mais antigas – a curitibana Araci Minaif, 74 anos, nascida e criada no mesmo endereço, uma esquina da Rua Fernando de Barros com Dias da Rocha, atrás do PolloShop. Há faixas e fotos na frente da velha residência de madeira, provavelmente erguida na década de 1940, reclamando o retorno da moradora. Na porta da área, um coração de papel recortado traz uma mensagem falando em "recomeço" e em "voltar logo".

Não, Araci não desapareceu. Desde o dia 12 de abril ela vive no Asilo São Vicente de Paulo, no Juvevê, está muito bem cuidada e recebendo visitas, como comprovam os registros de entradas na instituição, com cerca de 20 registros. A questão é que ela não se mudou do Alto da XV para o Juvevê "com as próprias pernas", mas depois de ser retirada aos gritos de onde mora, atendendo uma ação de proteção da Promotoria do Idoso do Ministério Público. O caso está na 18.ª Vara Cível. Araci é uma solitária urbana: não tem parentes imediatos, já chegou a juntar 25 toneladas de lixo no seu terreno e sofre do "mal dos acumuladores", como é conhecido.

Os vizinhos admitem o distúrbio, mas discordam que Araci seja incapaz de responder por seus atos. Para eles, a vizinha está de posse de suas propriedades mentais e, com ajuda médica e apoio afetivo, tem condições de viver a velhice em sua própria casa. O grupo de cerca de 20 moradores – intitulado "Amigos da Araci" –, inclusive, escreveu um plano de apoio, no qual se compromete a reformar a casa, construir um banheiro e fazer as vezes de cuidador [leia nesta página]. Na última quarta-feira, a associação promoveu uma manifestação na frente da moradia de Araci, o que é uma raridade numa época em que se afirma o fim das relações de vizinhança.

Amparo

Procurada pela reportagem da Gazeta do Povo, a promotora Terezinha Resende Carula, que cuida do processo, preferiu não dar entrevista. Seu argumento é que a repercussão do caso expõe em demasia a senhora Minaif, ferindo o Estatuto do Idoso. Ao argumento de que o Estado não pode relegar a vizinhos, ainda que bem intencionados, o destino de uma cidadã sozinha e da terceira idade, os que pedem sua volta recorrem ao passado: há uma década Araci é amparada por eles, que lhe emprestam o chuveiro, garantem as refeições e tentam convencê-la a se tratar, diante da resistência em se livrar dos monturos.

"Merecemos crédito. Estamos sempre por perto. Queremos o apoio do Estado, mas no espaço dela. Especialistas com os quais conversamos concordam que é o melhor a ser feito", argumenta a vizinha Lilian Seleme. Para representá-los junto ao Ministério Público, os "Amigos da Araci" contam com a assessoria voluntária da advogada Rogéria Dotti.

Histórico

O caso iniciou há uma década e foi desencadeado quando Araci, em sequência, perdeu a mãe, o irmão e um emprego de doméstica. Criada à moda antiga, "com poucas letras", como disse em entrevista dada ao jornal em 2009, viu-se sozinha e sem recursos, embora sua casa, em tempos idos, tenha sido uma das melhores do bairro. A venda de latinhas e demais sucatas virou seu sustento, o que se pode comprovar observando os carrinheiros que a procuram no Alto da XV.

Tudo indica que dos recicláveis a dona de casa evoluiu para a acumulação de objetos que ela mesma sai para recolher nas calçadas, um dos sintomas da chamada Síndrome de Diógenes. Mas Araci, sozinha, não é responsável pelas toneladas de lixo amontoadas no quintal e dentro da residência. O endereço virou espaço de desova de cadeiras, latas e sacos de detritos, ali atirados por gente da região. Não é tudo.

Como Araci gosta de animais – ela chegou a criar perto de 50 galinhas – é comum que lhe deixem de presente gatos e cachorros recém-nascidos, dos quais ela passa a cuidar. Não é difícil imaginar que em paralelo aos "Amigos da Araci" tenha se formado uma confraria não oficializada de vizinhos que se incomodam com o canto dos galos e com o lixo. Teria vindo desse grupo pedidos de providências à Fundação de Ação Social e agora ao Ministério Público, o que redundou em pelo menos quatro grandes faxinas no endereço e agora na interdição da proprietária.

E se fosse em um outro bairro?

De acordo com o Censo 2010, o Paraná tem 385.957 habitantes que moram sozinhos. Destes, 20% – 80.239 pessoas – vivem em Curitiba. A dona de casa Araci Minaif é uma delas e não é a única solitária entre os 198 mil moradores da capital paranaense com mais de 60 anos. Nem em seu bairro, o Alto da XV, Araci chega a ser uma raridade – segundo dados do Ipardes, 768 moradores da região não dividem o teto com ninguém. Desses, 337 têm acima de 60 anos. Mas apenas um idoso está sendo privado de permanecer onde quer, Araci.

O que faz a mulher chamar tanta atenção é o fato de pertencer a uma outra estatística que não a dos "solitários urbanos idosos do Alto da XV": ela é uma das aproximadas 10 mil pessoas que vivem do lixo na capital paranaense, uma população espalhada pela CIC, Tatuquara, Sítio Cercado e redutos como a Vila das Torres e Parolin, mas não na Zona Norte da cidade, justo aquela que projetou Curitiba como Capital Ecológica. Fica a dúvida se Araci seria retirada de uma casa que legalmente é sua se vivesse numa das franjas da Zona Sul.

Raridade

A situação delicada de dona Araci não se esgota nos dados populacionais, pirâmides etárias e síndromes pouco conhecidas. Ela é também uma exceção urbana. Pode-se dizer com folga que poucos dos 1.744.129 moradores de Curitiba receberiam manifestações como a que pôde ser vista semana passada no elegante Alto da XV. O medo, a mobilidade e o tempo passado fora de casa torna cada vez mais difícil saber o nome dos vizinhos, quanto mais brigar para que permaneçam onde estão.

Pois brigar tem sido a rotina da "turma da Araci". Eles arrumam tempo para falar com o Ministério Público, com os assistentes sociais do Asilo São Vicente, com a advogada Rogéria Dotti, para pedir tinta, telhas e louças para reformar a casa da amiga [leia nesta página]. No dia da manifestação se ocuparam também de relembrar histórias sobre a vizinha que aprenderam a respeitar, à revelia de sua mania de guardar coisas, hábito do qual ninguém está livre em maior ou menor grau.

"Ela é bem informada, ouve rádio, conta as notícias. De manhã, diz para a gente se vai chover ou esfriar. Isso é insanidade? No dia em que ela foi levada, o galo da Araci fugiu para a porta da minha casa. Era um sinal", comenta Lilian Seleme, que com o marido, Élcio, encabeça o movimento mais original da rica Zona Norte, desde o caso da polêmica sobre a ciclofaixa da Rua Augusto Stellfeld, que quase acabou em cadeia e mobilizou a opinião pública por dois anos.

"A patologia dela tem tratamento. Saúde vai além de bem-estar físico. Araci precisa do nosso afeto, ter a gente por perto", defende outra vizinha, Catiê Godoy. Próxima de Araci desde o início dos anos 2000, ela vê na movimentação no Alto da XV um debate importante sobre o lugar do idoso na cidade grande. Por que uma pessoa com mais de 60 anos não pode ser cuidada pelos vizinhos? É o que ela e os outros perguntam.

A piauiense Joana Darc Martins tem para com Araci uma atenção de filha. Passa todos os dias, desce do Jeep, ajuda a idosa no trato dos animais. Quando necessário, leva a vizinha ao médico. Outra conhecida, Adriana Katchutzki, 28 anos, agora com endereço em Quatro Barras, na região metropolitana, se dispôs a pernoitar com Araci todas as noites. Motivo? "Gosto dela. É uma boa pessoa."

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