O procurador-geral da República, Augusto Aras, deu na semana passada um parecer favorável a uma alteração em formulários, registros e documentos públicos no Brasil que atende a demandas de grupos LGBT. Entre as mudanças estão a possibilidade de trocar os títulos de “mãe” e “pai” por "filiação 1” e “filiação 2”.
O parecer foi dado no âmbito da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 899, ajuizada pela Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos (ABGLT) no Supremo Tribunal Federal (STF). O ministro Gilmar Mendes é o relator do processo, que tramita no STF desde novembro de 2021. O julgamento não está previsto no calendário da Corte para o primeiro semestre.
A ABGLT pede que formulários e bancos de dados públicos “respeitem a identidade de gênero dos genitores, contemplando a possibilidade de dupla parentalidade por pessoas do mesmo gênero”, e que seja declarado inconstitucional qualquer tipo de registro que não contemple essa demanda. A organização quer que os órgãos públicos deixem de exigir as expressões “pai” e “mãe” nos campos destinados à informação sobre filiação.
Em sua manifestação, Aras afirma que “famílias homotransparentais hão de receber a mesma proteção jurídica conferida às configurações familiares heteronormativas, inclusive com designação adequada de gênero em documentos e formulários oficiais”. “O reconhecimento jurídico de diferentes conformações familiares é medida que promove a dignidade humana”, observa o PGR.
Segundo ele, há uma “evolução sociológica do conceito de família”, centrada “na noção de afetividades”. Isso, de acordo com Aras, demanda que os registros públicos acompanhem “as novas formatações familiares reconhecidas pela doutrina, legislação e jurisprudência”.
O texto da Constituição e o Código Civil fazem diversas menções explícitas a "homem” e “mulher”. Mas, para Aras, desde quando o STF reconheceu as uniões estáveis homoafetivas como válidas, a interpretação do uso desses termos ganhou outro direcionamento. “A orientação da Corte Suprema direcionou-se no sentido de que, na ordem constitucional vigente, o afeto é o alicerce das relações familiares e vetor para análise de eventuais desacordos e direitos”, afirma o PGR.
Aras recomenda que o Supremo aceite as demandas da ABGLT, e que formulários e documentos oficiais “respeitem a autoidentificação de gênero parental” – preservando, no entanto, as informações sobre a origem biológica da pessoa – e contemplem “a possibilidade de parentalidade por duas pessoas do mesmo gênero”. Nos casos em que a mãe biológica não for exercer a função materna e que a paternidade adotiva for exercida por pessoas do mesmo gênero, o PGR recomenda substituir eventuais referências à mãe biológica por "parturiente”.
Ativismo judicial em decisão da união homoafetiva provocou efeito dominó difícil de se reverter
Para juristas consultados pela Gazeta do Povo, o ativismo judicial que permitiu sem deliberação pelo Congresso a união estável homoafetiva no Brasil, em 2011, provocou um efeito dominó difícil de ser revertido na Justiça brasileira. As referências explícitas a “homem” e “mulher” na Constituição e no Código Civil deixaram de ter validade, na prática, para o Judiciário, o que facilitou uma leitura anárquica do próprio conceito de família.
“Em 2011, eles acabaram interpretando a Constituição da forma como eles gostariam que estivesse escrita, com a previsão da união entre pessoas do mesmo sexo. Mas não é isso o que está escrito”, diz o professor de Direito Constitucional Tadeu Nóbrega, mestre em Direito pela PUC de São Paulo.
“Uma pseudociência tem tentado promover o fim da divisão dos sexos entre homem e mulher. É uma negação da própria realidade biológica. Negam a existência de homem e mulher. Isso vai além da própria leitura da Constituição. Do ponto de vista jurídico, há um prejuízo grave em deixar de considerar o homem e a mulher como realidades diferentes. Do próprio ponto de vista biológico, social, há diferenças entre o homem e a mulher. E isso precisa ser respeitado”, diz Nóbrega.
Em 2015, como consequência direta da decisão de 2011, o STF definiu que casais gays poderiam adotar crianças sem restrições de idade e sexo. No julgamento de 2011, o então ministro Ayres Britto já havia feito apontamento neste sentido, ao dizer em seu voto que “a isonomia entre casais heteroafetivos e pares homoafetivos somente ganha plenitude de sentido se desembocar no igual direito subjetivo à formação de uma autonomizada família”.
Se o STF seguir sua tendência dos últimos anos, a probabilidade da mudança nos registros e documentos públicos para atender às demandas LGBT é alta. Outros pleitos que embaralham as configurações familiares poderiam surgir a partir daí. Para André Gonçalves Fernandes, pós-doutor em Filosofia do Direito, Epistemologia e Antropologia Filosófica e autor de Filosofia da Família: a família como ela é (2022), a próxima peça desse efeito dominó poderia ser, por exemplo, o reconhecimento dos “trisais”, isto é, uniões de três pessoas.
Em 2018, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) sugeriu que cartórios suspendessem escrituras públicas envolvendo relacionamentos entre mais de duas pessoas até a regulamentação da matéria. A recomendação se deu após representação da Associação de Direito de Família e das Sucessões (ADFAS), que pediu a proibição do reconhecimento de “trisais”. “Não sei quanto tempo isso dura por lá. A minha perspectiva é de que, por qualquer motivo, inclusive este das ‘razões de dignidade humana’ (citado pelo PGR em sua manifestação mais recente), isso acabe passando.”
Para Nóbrega, “à medida que tudo se torna família, nós temos um enfraquecimento daquilo que realmente é a família, com as suas finalidades, seja a de unir o homem e a mulher, seja a finalidade de levar à procriação e também de fazer com que as pessoas cresçam num ambiente seguro e saudável”. Na visão dele, a dignidade humana, usada como justificativa para a aprovação de diferentes conformações familiares, acaba saindo “diminuída e prejudicada”.
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